Aqueles que acompanham mais de perto a minha trajetória como professor sabem que, desde 2014, eu participo da Olimpíada Nacional em História do Brasil (ONHB) como orientador de equipes. Ao longo de todos estes anos, eu já tive a oportunidade de ir a 4 Semifinais e a 3 Finais da ONHB, orientar dezenas de equipes na olimpíada, escrever/publicar um artigo científico sobre a competição e falar sobre a ONHB em eventos acadêmicos. E mesmo depois de tudo isso, algumas pessoas continuam me perguntando: Afinal, por que participar de uma olimpíada científica como a ONHB?
Sejamos francos, muitos professores das escolas brasileiras não são exatamente grandes fãs das olimpíadas científicas. Muitos reclamam do pouco interesse dos alunos por esses eventos, outros lembram que não possuem condições adequadas de trabalho para participar, alguns não desejam ter a qualidade do seu trabalho avaliada a partir do desempenho dos estudantes nessas competições e outros tantos insistem em criticar as olimpíadas científicas pelo fato de elas supostamente estimularem uma exagerada disputa entre os estudantes, o que seria prejudicial ao ambiente escolar e à própria formação humana dos alunos.
Na condição de professor da educação básica há mais de uma década, tenho a convicção de que não existem dinâmicas de ensino e aprendizagem que sejam perfeitas, e com as olimpíadas científicas não é diferente. Como quase tudo na vida, há “prós” e “contras” no que tange a essas competições. Mas, a partir da experiência acumulada nos últimos anos, eu acredito que é necessário fazer uma reflexão livre de estereótipos a respeito do assunto.
Uma primeira visão a ser desconstruída é a de que os alunos não se interessam por olimpíadas científicas. Até hoje, ao longo da minha carreira como professor, eu pude trabalhar tanto na rede estadual de ensino de Minas Gerais quanto na rede federal de educação profissional, científica e tecnológica. De fato, as realidades das escolas pelas quais eu já passei são bastante diferentes, mas o que eu quero destacar é que, desde 2014, eu sempre encontrei alunos interessados em participar da ONHB. É claro que em alguns anos o número de alunos interessados foi maior do que em outros, mas sempre tive a oportunidade de contar com tais alunos. Muitos professores reclamam do pouco interesse dos estudantes em olimpíadas científicas, mas boa parte desses mesmos professores também não se esforça para divulgar e incentivar a participação dos seus alunos nesses eventos. Aqui cabe a pergunta: Como o aluno vai ter interesse em participar de uma olimpíada científica se o seu professor nunca falou sobre o assunto? Não quero colocar toda a responsabilidade nas costas dos professores – tendo conhecimento e experiência sobre como é a profissão docente em nosso país, eu jamais faria isso –, mesmo porque alunos sem interesse em estudar realmente existem. Todavia, não podemos ignorar o fato de que muitos professores ainda precisam fazer uma autocrítica sobre a sua forma de trabalho antes de reclamar do “baixo interesse” dos estudantes em participar de olimpíadas científicas.
Outra visão que também precisa ser desconstruída é a de que as olimpíadas científicas são ruins porque estimulam uma disputa exagerada entre os alunos, ensejando uma cultura de individualismo e competição naquilo que seria uma verdadeira ode à meritocracia. Sabemos que o discurso “liberal-capitalista” acerca do conceito de “meritocracia” é bastante problemático, sobretudo quando vemos na internet coaches, gurus e influenciadores digitais afirmando de maneira simplista que “só basta se esforçar para vencer na vida” e que, em uma disputa, é sempre o “melhor” quem vence. Ora, sabemos que tal concepção de “meritocracia” é bastante questionável porque ignora a complexidade da realidade social, econômica, histórica, política e cultural vivenciada por cada indivíduo. Porém, temos que ter em mente que, embora seja possível tecer críticas a tal concepção de “meritocracia”, isso não significa que devamos enxergar o ato de competir “em si” como algo necessariamente ruim ou que sempre leva a uma cultura de individualismo. Afinal, é justamente o ato de “competir” que muitas vezes nos instiga a alcançar nossos objetivos a partir do nosso próprio esforço, o que está longe de ser algo negativo para as nossas vidas.
Infelizmente, há no Ocidente uma tradição de pensamento que se baseia em um constante binarismo que divide tudo em dicotomias como “certo-errado”, “bonito-feio”, “bom-mau”, “civilização-barbárie”. O problema de tal linha de raciocínio é que, quando se fala em “competição”, muitas vezes as pessoas acreditam que se trata de algo que seria o completo oposto da “colaboração”, o que não é verdade. O fato é que “competição” e “colaboração” não são necessariamente “inimigas eternas” uma da outra. Muito pelo contrário, “competição” e “colaboração” podem coexistir em muitos momentos, como tão bem mostra a minha própria experiência como professor orientador de equipes na Olimpíada de História. Ao longo dos últimos anos, durante várias edições da Olimpíada, eu pude ajudar e receber a ajuda de vários outros professores orientadores de equipes que trabalhavam em outras instituições de ensino. Também pude ver, por várias vezes, estudantes de equipes diferentes ajudando uns aos outros durante a realização das provas da ONHB. Estes são exemplos que mostram que a “competição” não necessariamente leva ao “individualismo”, mas que o ato de “competir” pode ser perfeitamente compatível com uma cultura de “colaboração” e “solidariedade”.
Sabemos que falta a muitas pessoas a maturidade necessária para participar de competições de uma maneira mais “saudável”. Constantemente vemos pessoas que, em contextos de competição, optam por tratar os seus “adversários” como se fossem verdadeiros “inimigos mortais”, até mesmo ignorando princípios e valores éticos fundamentais durante a disputa com “o outro”. No caso das olimpíadas científicas, infelizmente, temos observado diversas instituições de ensino, sobretudo aquelas ligadas à iniciativa privada, investindo pesado em tais competições como uma forma de fazer o seu marketing e atrair novos estudantes, que são vistos por essas instituições como verdadeiros “clientes” em um negócio cujo único objetivo é o lucro e não a formação humana das novas gerações. Não poucas vezes, professores e escolas usam de estratégias desonestas para garantir os bons resultados dos seus alunos em olimpíadas científicas, o que é uma prática inaceitável e que merece ser alvo de críticas. Na própria Olimpíada de História, durante as fases online da competição, temos acompanhado relatos acerca de professores que literalmente entregam as respostas prontas para os alunos apenas para ter muitas equipes alcançando a Fase Final da ONHB, de modo a fazer a melhor propaganda possível das suas escolas, o que é um verdadeiro absurdo.
É realmente lamentável que muitas olimpíadas científicas venham sendo tratadas como verdadeiras “guerras escolares” onde muitos deixam a ética de lado em nome da “vitória”. Todavia, isso tem ocorrido não como uma consequência “natural” da existência da competição “em si”, mas em função da forma como alguns professores e instituições de ensino têm lidado com as olimpíadas científicas. A participação nesse tipo de evento não deve jamais ser baseada na busca pela vitória “a qualquer custo”, mas sim no genuíno interesse pela construção do conhecimento. E neste aspecto o papel do professor é fundamental, pois é ele quem deve atuar como um mediador no processo de ensino-aprendizagem dos estudantes durante a participação nessas competições. Cabe ao professor auxiliar os alunos na compreensão de que o mais importante ao se participar de olimpíadas científicas não é simplesmente ganhar prêmios/medalhas, mas sim construir novos conhecimentos. Se muitos professores ainda não compreenderam isso, talvez ainda seja necessário, com disse uma vez Edgar Morin, “educar os educadores” para que a cultura do individualismo e da busca pela vitória “a qualquer custo” não floresça em nossas escolas.
Sabemos que, em muitas escolas brasileiras, os professores não se sentem confortáveis para participar de olimpíadas científicas. As lacunas na formação inicial e continuada dos docentes, as péssimas condições de trabalho dos professores e os inúmeros problemas na infraestrutura das escolas – em especial das escolas públicas – são fatores que dificultam a rotina do professor. Em meio a tantas dificuldades, é natural que muitos professores não tenham nem vontade nem condições de participar de olimpíadas científicas. Constantemente questionado e desrespeitado pela sociedade, o professor brasileiro muitas vezes não aceita facilmente que o seu trabalho e o aprendizado dos seus alunos sejam avaliados de outras formas para além dos métodos mais “tradicionais”. Muitos docentes não gostam da ideia de que os seus alunos participem de olimpíadas científicas porque temem que os resultados nessas competições sejam prejudiciais para a sua imagem e para a imagem das instituições nas quais trabalham. A situação é ainda mais delicada no caso de muitas escolas públicas que, em função de uma série de dificuldades de ordem material, estrutural e financeira, simplesmente não possuem condições de disputar olimpíadas científicas de igual para igual com certas instituições particulares de ensino. Em muitas escolas é até comum ouvirmos frases como: “Não adianta incentivar meus alunos a participarem dessa olimpíada porque eu já sei que eles vão se sair mal”.
No caso da própria ONHB, o que temos observado ao longo das suas últimas edições é que boa parte das medalhas de ouro, prata e bronze na competição têm sido conquistadas justamente por equipes oriundas de colégios particulares que possuem muito mais condições de participar da Olimpíada de História do que a maioria das escolas públicas. Apenas para se ter uma ideia da tamanha diferença entre o desempenho das escolas particulares e o das escolas públicas na ONHB, vale registrar que, entre as equipes finalistas da ONHB 2023 pertencentes ao estado de Minas Gerais, por exemplo, metade delas era oriunda de um único colégio particular localizado na cidade de Ipatinga-MG. Vale ressaltar que situações como essa também se repetiram em outros estados brasileiros quando da classificação para a Grande Final da ONHB 2023, o que reforça a percepção de que há uma enorme desigualdade entre as instituições públicas e particulares de ensino no Brasil. Não sejamos, portanto, ingênuos no que tange às olimpíadas científicas: nem todas as escolas possuem as mesmas condições para participar desses eventos.
Mas se as condições de disputa nas olimpíadas científicas estão longe de serem justas e iguais para todos, por que então os professores deveriam incentivar os seus alunos a participarem dessas competições? Acredito que, apesar das dificuldades enfrentadas por muitas escolas públicas para participar de olimpíadas científicas, tal participação é fundamental para a renovação das práticas pedagógicas desenvolvidas nestas escolas. Por serem atividades desafiadoras e até mesmo mais lúdicas do que muitas das atividades realizadas cotidianamente nos espaços escolares, as olimpíadas científicas têm o potencial de estimular nos alunos a curiosidade e o maior interesse pelos estudos, o que já é muito importante quando se pensa na necessidade de melhorar o desempenho escolar das novas gerações. As questões e tarefas da Olimpíada Nacional em História do Brasil, por exemplo, estimulam a leitura de diversos documentos históricos, a reflexão crítica sobre a História do Brasil, bem como a participação ativa dos próprios alunos na construção do conhecimento histórico por meio da realização de pesquisas, debates e do trabalho em equipe.
Ademais, não podemos nos esquecer que a competição e a busca pelo mérito próprio fazem parte da vida de todos nós. Pensemos nos exames vestibulares, nos processos seletivos para a ocupação de vagas no mundo do trabalho, no fato de muitas pessoas gostarem de acompanhar campeonatos esportivos, nos concursos públicos etc. Poderíamos aqui multiplicar a lista de exemplos apenas para enfatizar que todos nós, em algum momento da vida, vamos estar envolvidos em algum tipo de “competição” ou “disputa”. Ora, é justamente ao participar de uma competição que nos sentimos desafiados e muitas vezes somos levados a nos esforçar para melhorar nosso desempenho, seja nos estudos, no esporte ou na vida profissional. E que sensação maravilhosa é constatar que conseguimos alcançar um determinado resultado a partir do nosso próprio mérito e da nossa dedicação! Não estou sugerindo que devamos buscar isso apenas por meio de “competições”, mas que o ato de “competir” pode proporcionar a oportunidade de melhorarmos enquanto pessoas e aprimorarmos nossas competências e habilidades.
A busca por bons resultados em olimpíadas científicas possui, portanto, um inegável e relevante aspecto motivacional para professores e alunos, pois a participação nessas competições pode contribuir enormemente para que docentes e discentes busquem cada vez mais a melhoria na qualidade da educação ofertada nas escolas. E isso é algo fundamental principalmente para as escolas públicas, uma vez que elas têm sido tão desvalorizadas por parte dos nossos governantes e da nossa sociedade. Se queremos mostrar que a educação pública pode e deve sim ter qualidade, a busca por bons resultados em olimpíadas científicas é um interessante caminho a seguir para que consigamos alcançar tal objetivo. Não estou sugerindo que só é possível obter e mostrar uma maior qualidade da educação a partir da participação em olimpíadas científicas, afinal, os resultados obtidos nessas competições não devem jamais ser analisados de maneira isolada, mas em conjunto com outros fatores atinentes ao ambiente escolar. O que eu quero enfatizar é que não podemos mais fechar os olhos para o papel que pode ser exercido pelas olimpíadas científicas nas nossas escolas.
Em meio a um cenário tão desafiador para a educação no mundo contemporâneo, é preciso abandonar certos estereótipos, sair da zona de conforto e encarar o desafio de participar de competições como as olimpíadas científicas. O que aprendi por meio da minha experiência própria com a ONHB é que orientar alunos em competições desse tipo nem sempre é fácil e que tal prática só pode ser executada com qualidade se houver condições adequadas de trabalho, apoio por parte das instituições de ensino e muita força de vontade por parte de professores e alunos. Todavia, apesar das dificuldades nesse processo, as recompensas podem ser muitas, e não estou me referindo apenas a prêmios/medalhas, mas sim a tudo aquilo relacionado ao que é mais fundamental nas nossas escolas: a construção coletiva do conhecimento.
Certamente, as olimpíadas científicas não são perfeitas, e muito poderia ser feito para melhorá-las e torná-las mais “justas” e compatíveis com a enorme diversidade de situações existentes nas escolas brasileiras. Mas se recusar a participar de tais competições em função dos seus aspectos “problemáticos” e “polêmicos” não é o melhor caminho, uma vez que isso seria o mesmo que jogar fora a criança junto com a água suja do banho. As olimpíadas científicas podem abrir um mundo de possibilidades para a educação brasileira, e já passou da hora de muitas pessoas finalmente perderem o medo de participar dessas competições.
Prof. Dr. Rodrigo Francisco Dias
29 de janeiro de 2024