(*) Texto escrito por Edison Veiga e originalmente
publicado no site da BBC News Brasil,
no dia 8 de agosto de 2018. Para ver o texto conforme publicado no site de
origem, clique aqui.
Mudanças sociais e políticas na história influenciam
nas representações do diabo.
Em uma biblioteca histórica na cidade de Tréveris,
atualmente Alemanha, há um manuscrito feito provavelmente entre os anos 800 e
825 com o texto do livro bíblico do Apocalipse. Totalmente ilustrado com
iluminuras. "Uma gravura mostra a luta do Arcanjo Miguel contra os anjos
rebeldes. Nessa gravura, há dois grupos de anjos: os rebeldes e os que
permaneceram fiéis a Deus. O interessante é que não há nenhuma distinção entre
ambos os grupos, apenas a posição de cada um no quadro.
Essa
é, talvez, a mais antiga representação dos demônios de que se tem
notícia", diz Edin Sued Abumanssur, professor do departamento de Teologia
e Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP).
"Nele,
o diabo é representado como um enorme dragão, mas seus companheiros rebeldes e
decaídos são iguais aos anjos que os fizeram precipitar: têm asas, vestes
longas, cabelos encaracolados. A única coisa que lhes falta é a aureola",
descreve a jornalista e escritora italiana Paola Giovetti, no livro L'Angelo Caduto (o anjo caído).
Segundo
Abumanssur, ao longo da história,
observa-se uma correlação entre os momentos políticos e sociais e as
representações do diabo. "No campo das artes, pictórica, escultórica ou
literária, a tentativa de traçar um desenvolvimento cronológico da imagem do
diabo dificilmente renderá bons frutos. Há contradições e permanências em
diferentes formas de representá-lo, que se superpõem sem nenhum critério claro
e apreensível", afirma o professor.
Até
o século 11, conforme aponta o pesquisador, ele quase sempre foi retratado com
aparência humana.
Gravura guardada na Alemanha é talvez a mais antiga representação dos demônios.
Reprodução Acervo Trier Library.
No
Ocidente, a partir do ano 1000, o diabo começa a ser representado com aparência
grotesca e monstruosa, entre o humano e o animal. "Na Idade Média, os
processos imaginários não eram homogêneos. Grandes contingentes populacionais,
espalhados por extensos territórios, em uma época na qual as comunicações e as
trocas culturais eram lentas, fragmentadas e de baixa densidade, faziam com que
diferentes compreensões e ideias sobre o diabo convivessem em
mutualidade", diz o pesquisador.
"Podemos
afirmar com alguma margem de segurança que, a partir do século 11,
características não humanas da figura do demônio começam a ganhar certa
hegemonia no meio da população embora ainda sobrevivam, por essa época,
representações de anjos caídos que guardam proximidade com a figura do
homem."
O
escritor e semiólogo italiano Umberto Eco tratou dessa questão no livro História da Feiura. "É somente a partir do século 11 que ele
começa a aparecer como um monstro dotado de cauda, orelhas animalescas,
barbicha caprina, artelhos, patas e chifres, adquirindo também asas de
morcego", escreveu.
Vermelho
e com chifres
Eco
ressalta que "parece óbvio, também por motivos tradicionais, que o diabo
deva ser feio". "O feio, sob a forma do terrificante e do diabólico,
faz seu ingresso no mundo cristão com o Apocalipse de São João Evangelista. Não
é que faltassem menções ao demônio e ao inferno no Antigo Testamento e nos
outros livros do Novo Testamento, mas nesses textos o diabo é nomeado sobretudo
através das ações que realiza e dos efeitos que produz (as descrições dos
endemoniados nos Evangelhos, por exemplo), à exceção do Gênesis, onde assume
forma de serpente", dissertou o semiólogo. "Ele nunca aparece com a
evidência 'somática' com que será representado na Idade Média".
A
figura mais icônica do demônio, o ser vermelho, com rabo, chifres e tridente é
uma construção paulatina e gradual. "Inicia-se a partir do século 11 um
processo de sistematização dogmática da figura do diabo que tenta reunir em uma
síntese tanto a teologia quanto as representações do imaginário social do
período e que ao mesmo tempo venha em socorro das necessidades políticas de uma
ordem medieval que começa a esboroar-se", aponta o sociólogo Abumanssur.
"A
extensa iconografia do diabo dá testemunho da luta teológica e política,
violenta não poucas vezes, que faz emergir aos poucos a figura de um senhor
terrível, que subjuga os homens e mulheres na maldade. A imagem soberana,
senhorial e majestática, inumana mesmo, do diabo, emerge lentamente no processo
de consolidação do poder papal e da figura do rei autocrático como torreões de
fortaleza capazes de resistir a um deus da maldade cada vez mais poderoso e
antagonista da paz e da ordem."
Tal
figura é a mescla da cultura erudita dos monges e teólogos medievais com a
cultura popular eivada de superstições e paganismo. "A fome, as pestes e o
lento desmonte do sistema feudal cooperaram para que o diabo assumisse suas
características inumanas a partir do século 11", diz Abumanssur. "A
assimilação da cultura grega e seus deuses por parte do cristianismo trouxe
contribuições como os chifres, os pés de bode e o rabo, características do deus
Pã. A entrada do cristianismo nos países celtas, ao norte da Europa, contribuiu
para reforçar essa imagem próxima do deus Cernu, ou Cernunno."
Conforme
lembra o teólogo Volney Berkenbrock, professor de Ciência da Religião da
Universidade Federal de Juiz de Fora, a versão caricata do diabo como um
serzinho vermelho e chifrudo é consequência daquilo que o cristianismo
procurava combater, no início, ou seja, as crenças greco-romanas.
"Nos
embates de culturas - e, no caso específico, de religiões - os símbolos da
religião dos outros serão postos como algo extremamente ruim e malévolo. Dessa
forma, Satanás ganhou adereços de quem se estava combatendo", explica.
"Concretamente:
o cristianismo, ao combater a religião grega - e também a romana - coloca
chifres no diabo por conta do Deus grego Pã, uma figura representada como meio
homem, meio carneiro chifrudo, que seduzia as jovens. Da mesma forma, usa o
tridente, para combater Posseidon, o Deus grego dos mares - Netuno para os
romanos -, pois o tridente era o símbolo dessa divindade."
Essa
dicotomia, aponta o pesquisador, ocorre até hoje. "Um exemplo típico é
como algumas igrejas cristãs identificam a figura de Exu, advinda da religião
africana dos iorubanos, como o demônio", pontua.
Cultura
As
representações culturais da figura de Satanás são recorrentes desde a Idade
Média. Atualmente, essa carga imagética ganha referência da cultura pop - dos
filmes às histórias em quadrinhos.
"No
cinema o filme O Exorcista, de 1974, foi um divisor de águas. Ele
marcou a filmografia subsequente", acredita Abumanssur. "Há uma
imagem feita entre 1471 e 1475, de autor conversando com São Teófilo de Adana.
O diabo mostra um livro a São Teófilo e, talvez, seja a primeira pintura a
simbolizar um pacto com o diabo. Isso é interessante, pois marca o valor da
assinatura como forma de validar acordos. Os acordos financeiros se valeram
dessa mudança cultural."
De
origem hebraica, a palavra satanás significa "acusador" ou
"adversário". Suas ocorrências mais antigas, portanto, não aludem a
uma figura oposta a Deus, muito menos de algo que personifique o mal. "Ele
era simplesmente o acusador, quase o que hoje se poderia chamar de promotor de
Justiça", compara o teólogo Berkenbrock.
"A
ideia de satanás como personificação do mal entrou para o judaísmo
provavelmente por meio de influência babilônica, mais especificamente da
religião de Zaratustra (o Mazdeísmo), que conhece uma figura oposta ao Deus
(Ahura Mazda), figura esta chamada de Ahriman. Assim, o judaísmo passou - já no
tempo de Jesus - a assumir o imaginário de uma figura contraente de Deus,
usando para isto a palavra satanás."
As
palavras diabo e demônio são legado da influência grega sobre o cristianismo.
Demônio (ou daimon) significa força, impulso - e passou a ser identificada como
força negativa. Diabo (diabolos) é divisor, aquele que causa divisão.
Figura do diabo também ganha releituras na cultura pop.
Em
seu livro O Cristo Pantocrator, a pesquisadora Wilma Steagall De
Tommaso, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e do Museu
de Arte Sacra de São Paulo e membro da Sociedade Brasileira de Teologia e
Ciências da Religião, ressalta que o contexto da Idade Média foi favorável a
criação da imagem de satanás.
"A
vida humana estava sempre sob ameaça. Os fardos cotidianos eram pesados. A
morte era um guia constante e os moribundos se questionavam para saber se
poderiam esperar a vida eterna após a morte ou as torturas do inferno",
afirma.
"O
medo do além era tão presente e tão físico que era acompanhado de um temor
religioso profundo. Ninguém poderia escapar do julgamento final, mas era tido
como certo trabalhar durante a vida para a salvação."
"Foi
assim", prossegue a pesquisadora, "que o tema do Juízo Final se
tornou o predileto dos tímpanos - arcos situados acima da entrada da igreja -,
constituindo-os num grande vetor monumental, uma grande invenção da arte
românica."
Era
Deus colocado em paralelo ao diabo. A ameaça constante do mal se apossando das
pessoas. "Os sermões dos padres visavam amedrontar, desgrenhando a
condição humana sob cores vivas, às vezes em excesso, e representando
artisticamente o destino sobre as paredes pintadas", explica Tommaso.
Juízo
Final, não à toa, é considerado o principal afresco da carreira do
renascentista Michelangelo. Entre 1535 e 1541, o artista toscano pintou na
Capela Sistina, no Vaticano, a representação artística do julgamento de Deus,
narrado no livro bíblico do Apocalipse.
Michelangelo pintou a representação artística do julgamento de Deus.
Foto: Divulgação / Musei Vaticani.
Outras
representações
No
livro História da Feiura, Umberto Eco lembra de outras
representações da figura do mal. "Existiam em diversas culturas vários
tipos de demônio", escreveu. No Egito antigo, havia o monstro Ammut,
híbrido de crocodilo, leopardo e hipopótamo. A cultura mesopotâmica tinha
referências a seres de feições bestiais.
"Quanto
à cultura hebraica, que influencia diretamente a cristã, é o diabo, assumindo a
forma de serpente, quem tenta Eva, no Gênesis", afirmou Eco. "Sempre
na Bíblia, encontramos menções a Lilith, monstro feminino de origem babilônica
que, na tradição hebraica, transforma-se em demônio feminino com rosto de
mulher, longos cabelos e asas."
Deusa adorada na
Babilônia e na Mesopotâmia, Lilith era associada a ventos que, segundo se
acreditava à época, traziam enfermidades e morte. Na tradição judaica antiga, ela
aparece como um demônio noturno. Para os islâmicos, Lilith foi a primeira
mulher do personagem bíblico Adão - e acabou acusada de ter sido ela a serpente
que fez com que Eva comesse o fruto proibido.