(*) Texto escrito por Joelza Ester Domingues, originalmente publicado no site Ensinar História no dia 28 de novembro de 2018. Para ver o texto conforme publicado no site de origem, clique aqui.
No
mundo de hoje onde o foco é o presente e o futuro, a História é vista como um
conhecimento praticamente dispensável para a vida e o mercado de trabalho. Para
quê estudar coisas que aconteceram há muito tempo? Que importância tem a
História no currículo escolar e na vida prática? Os historiadores não salvam
vidas como os médicos, não constroem edifícios, pontes ou rodovias, não prendem
criminosos, nem apagam incêndios e sequer inventam equipamentos eletrônicos ou
remédios para a cura do câncer. Enfim, qual a importância em estudar o passado
diante de tantas necessidades do presente?
Com
todos esses questionamentos contrários à História, ainda assim essa ciência
atrai muita gente. Não somente estudantes, mas, também profissionais com
carreiras consolidadas que decidem voltar à faculdade para fazer História. É
possível que o interesse imediato desse público seja conhecer o passado, o que
parece óbvio, mas essa não deveria ser a única razão para alguém estudar
História. Há muitos outros motivos, menos tangíveis e imediatos do que os de
outras ciências, mas indispensáveis para se estudar História, como comentaremos
abaixo.
Que passado a História
estuda?
Conhecer
o passado é da natureza do conhecimento histórico. Mas, a História não é a
necrologia do passado, não é uma lista de nomes, datas e feitos de pessoas
mortas. São as questões do presente que orientam a pesquisa do passado. Assim,
o passado interessa na medida em que ajuda a responder nossas perguntas sobre o
que vivemos hoje.
Os
estudos históricos têm se concentrado em compreender questões atemporais, por
exemplo, as formas pelas quais pessoas, comunidades e nações interagem; a
natureza do poder e da liderança política; as dificuldades do governo e da
gestão econômica; o impacto da guerra e do conflito nas sociedades; a
interferência de valores e fundamentos religiosos nas sociedades; as relações
entre as diferentes classes, riqueza, capital e trabalho etc. Temas e questões
como essas nunca morrem, apenas as pessoas, os lugares e os detalhes mudam.
A
História fornece um reservatório das múltiplas experiências humanas em espaços
e tempos diferentes – a única base de evidências reais de como as
sociedades se comportam. Se a nação está em paz, como avaliar o impacto de uma
guerra sem recorrer à História? Como avaliar a ameaça contra a democracia sem
usar nossos conhecimentos ou experiências de ditaduras do passado?
Esse
é o sentido em conhecer o passado: fornecer referências para compreender como
as pessoas agem, que fatores as impulsionam crescer e mudar, ou porque resistem
às mudanças, o que impacta nossas vidas de maneira positiva e negativa. Esse
conhecimento amplifica nossa compreensão sobre o mundo moderno e sinaliza
outras possibilidades de experiências.
"Em resumo, prestem atenção a esta aula e vocês não serão facilmente enganados
como os seus pais.", diz a professora de História.
Para que serve a
História? Que habilidades ela desenvolve?
Nem
todo estudante de História se torna um historiador profissional. Mas,
certamente, o estudo da História desenvolve habilidades e competências
indispensáveis para qualquer outra ciência e profissão. Comentamos abaixo as
habilidades específicas do estudo da História mas que não se limitam a ela, mas
são essenciais para outros campos do conhecimento.
1. Extrair evidências e significados em
fontes diversas
Pesquisar,
localizar e interpretar material escrito, artefatos, fontes orais, digitais e
visuais desenvolve as habilidades de extrair informações e interpretações
avaliando sua confiabilidade, credibilidade, utilidade, significado e
relevância. A capacidade de examinar e confrontar dados variáveis permite
distinguir verdade, mentira, manipulação e distorção de fatos e objetivos –
habilidade importante para enfrentar os desafios das tecnologias de informação
e comunicação.
2. Avaliar
interpretações conflitantes
Estudar
as sociedades e as experiências humanas é lidar com contradições, ambiguidades,
conflitos e interesses divergentes que interferiram no passado. O estudo da História
é um laboratório de treinamento para identificar e avaliar situações
conflitantes que atuam no presente – na política, na sociedade, na cultura por
exemplo – fornecendo subsídios para distinguir objetivos, perceber mudanças ou
continuidades e identificar tendências.
3. Analisar mudanças e continuidades
A
História não estuda o passado morto e acabado, mas as mudanças que ocorreram,
suas causas e desdobramentos, sua magnitude e importância no processo
histórico. É uma habilidade essencial para entender nosso mundo atual em
constante mudança. Há um consenso, hoje, de que o trabalhador do futuro deve
ser capaz de se adaptar à mudança. As transformações ocorridas no passado
fornecem pistas que ajudam refletir sobre as mudanças exigidas no presente. O
que aconteceu com os artesãos urbanos na Revolução Industrial? Como as famílias
se recompuseram depois de guerras ou epidemias devastadoras?
À
luz da História, é possível avaliar se um determinado fator é gerador de
mudanças profundas ou superficiais. O aprendizado da História permite avaliar,
por exemplo, até que ponto uma inovação tecnológica, uma nova política
educacional ou uma rebelião social são, de fato, geradores de mudanças significativas
ou só reacomodaram velhas estruturas.
4. Relacionar e
confrontar diferentes tipos de evidências
O
estudo da História desenvolve uma visão mais ampla dos acontecimentos ao
estabelecer conexões entre fatores diversos buscando entender como eles interagem.
A História lida, também, com diferentes interpretações e versões de sujeitos,
culturas e povos. Isso possibilita confrontar pontos de vista, fazer
inferências claras e pertinentes, estabelecer inter-relações e compreender
situações mais complexas em que é necessário “olhar a floresta e não somente a
árvore” – uma habilidade fundamental em nosso mundo globalizado que não
comporta explicações simples nem únicas.
5. Produzir
conhecimento e resolver problemas
A
pesquisa histórica é, muitas vezes, um salto no escuro. À medida que se
aprofundam no passado, os historiadores quase sempre encontram perguntas não
respondidas, informações obscuras, datas e nomes que não correspondem, ausência
ou inconsistência de dados, documentos incompletos ou inexistentes. É como
montar um gigantesco quebra-cabeça sem imagem para servir de guia. O
pesquisador deve avaliar suas evidências, selecionar informações relevantes e
confiáveis, buscar referências para as peças que faltam em sua pesquisa,
formular hipóteses, desenvolver argumentos apoiados em teorias confiáveis –
enfim, o estudo da História produz conhecimento para solucionar problemas
apontados pelas grandes perguntas que norteiam o trabalho do historiador.
6. Utilizar múltiplos
conhecimentos de diferentes ciências
A
História se interessa por todos os aspectos da vida humana – política,
economia, cultura, cotidiano, infância, mentalidades, artes, guerras, trabalho
etc. – o que abre um enorme leque de temas de pesquisa e de abordagens. Para
isso, a pesquisa histórica utiliza conhecimentos e ideias de outras ciências
como a Antropologia, a Geografia, a Psicologia, a Linguística etc.
Além
disso, todos os campos do conhecimento têm a sua história o que torna a
História uma ciência de múltiplas dimensões: há uma História da Música, da
Matemática, das Ciências, da Medicina, do Direito, da Educação, da Religião e,
até mesmo, a História da História. Essa habilidade torna o historiador e
o estudante de História mais apto para “pensar fora da caixinha” unindo
criatividade ao pensamento científico e crítico.
7. Argumentar e
expressar-se em diferentes linguagens de forma clara e fundamentada
A
História trabalha com uma enorme diversidade de documentos: textos,
fotografias, caricaturas, gráficos, tabelas, mapas, artefatos, áudios, artes
plásticas etc. Isso habilita o historiador a utilizar diferentes linguagens, a
ler criticamente e a questionar todo material que examina seja uma notícia de
jornal, uma entrevista, uma carta medieval ou uma caricatura do século XIX. Em
um mundo onde as fake news podem influenciar as eleições, as habilidades dos
historiadores são mais do que nunca necessárias.
Com
base no material coletado e analisado, o historiador formula e defende suas
ideias com afirmações claras, ordenadas, fundamentadas e compreensíveis. Isso
pode ser feito em diferentes linguagens e plataformas: livros, ensaios,
artigos, resenhas, blogs e, também em exposições orais, vídeos, entrevistas
etc. A História desenvolve uma forte capacidade de comunicação, de
questionamentos, formulação de hipóteses e argumentação.
Conclusão
O
pensamento crítico e criativo, e a capacidade de investigação criteriosa, entre
outras habilidades desenvolvidas pelo estudo da História, têm sido requisitos
importantes na seleção de candidatos para as grandes empresas de tecnologia dos
Estados Unidos e do Reino Unido, levando-as a empregarem estudantes de
humanidades junto aos graduados em engenharia e ciência da computação.
A
importância da História, contudo, é muito mais ampla do que as habilidades que
ela desenvolve. Ela nos ilumina sobre nossa rica herança cultural e é essencial
para despertar e fortalecer os laços de coesão de uma comunidade. A consciência
histórica, essa memória coletiva e individual de pertencimento, é um elemento
crucial para superação de marcas do passado que levaram a desigualdades,
preconceitos e estigmas sociais.
A
História instiga o indivíduo a questionar seu próprio mundo e a buscar maneiras
de torná-lo melhor. É um repositório de experiências humanas que fornece uma
compreensão real da interdependência entre sociedades. Inspira a reconhecer a
importância da ética, da tolerância, da empatia, do acolhimento e valorização
da diversidade.
Por
fim, como lembra Marc Bloch, “mesmo que julgássemos a história incapaz de
outros serviços, seria certamente possível alegar em seu favor que ela distrai
(…). Pessoalmente (…) a história sempre me divertiu muito”. Isso não deve
ser subestimado: um dos fundamentos da atividade intelectual consiste no
prazer, na satisfação derivada do conhecimento – o que responde porque todo
historiador, professor ou estudante de História é apaixonado pelo seu estudo.
Fontes:
BLOCH,
Marc. A Apologia da História ou o ofício
do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
DUBY,
Georges. O historiador, hoje. In: DUBY,
Georges; ARIÈS, Philippe; LADURIE, E. L. R.; LE GOFF, Jacques (Orgs.). História e Nova História. Lisboa: Teorema, s/d, p. 07-21.
LE
GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas:
Unicamp, 1994.
MARROU,
Henri-Irenée. Sobre o conhecimento
histórico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
SCHMIDT,
M. A. O ensino de História e os desafios da formação da consciência histórica.
In. MONTEIRO, Ana Maria (Org.). Ensino
de História: sujeitos, saberes e práticas. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj,
2007.