domingo, 31 de março de 2019

O ano de 1964 no Brasil: Golpe ou Revolução? (*)


(*) Este texto, que é organizado por meio de algumas perguntas e respostas sobre o Golpe de 1964 no Brasil, foi escrito por Jhonatan Uewerton Souza. O autor tem Graduação em História pela Universidade Estadual de Maringá, Mestrado em História pela Universidade Federal do Paraná e é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná. A publicação do texto neste blog foi autorizada pelo próprio autor. Algumas pequenas adaptações no texto foram feitas para que o mesmo se adequasse melhor ao formato do nosso FORMAÇÃO HISTÓRICA - Blog de Ensino e Aprendizagem. O texto foi por nós recebido no dia 31 de março de 2019.


O que houve entre os dias 31 de março e 02 de abril de 1964 no Brasil foi um golpe ou uma revolução?

Golpe. Comecemos esclarecendo o conceito. Conforme o verbete "Golpe de Estado", escrito por Carlos Barbé, para o Dicionário de Política, do Norberto Bobbio: "o Golpe de Estado é um ato efetuado por órgãos do Estado. Em suas manifestações atuais, o Golpe de Estado, na maioria dos casos, é levado a cabo por um grupo militar ou pelas forças armadas como um todo". O apoio de setores da sociedade civil, em geral relacionados aos estratos médios e superiores da sociedade, não anula a possibilidade de utilização do conceito de golpe. Como adverte Barbé: "O Golpe de Estado pode ser acompanhado e/ou seguido de mobilização política e/ou social". Além disso: "Habitualmente, o Golpe de Estado é seguido do reforço da máquina burocrática e policial do Estado". [1]

Vamos aos fatos. Os próprios agentes envolvidos na deposição de João Goulart tinham plena consciência de que se tratava de um golpe. No dia 30 de março, aliás, o consulado americano no Brasil enviou um telegrama ao Departamento de Estado, em Washington, nos seguintes termos: "Duas fontes ativas do movimento contra Goulart dizem que o golpe contra o governo do Brasil deverá vir nas próximas 48 horas". [2]


Todo o povo brasileiro estava contra Jango?

Não. Pesquisas realizadas pelo Ibope entre 9 e 26 de março de 1964, nas cidades de Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre indicam amplo apoio popular a João Goulart e às suas reformas de base. Em São Paulo, por exemplo, Jango tinha 70% de aprovação. [3]


É verdade que Jango havia fugido do país em 1 de abril de 1964, o que justificaria a declaração do estado de vacância do cargo de presidente?

Não. Na própria sessão conjunta entre Câmara e Senado realizada na madrugada do dia 2 de abril, antes de ser comunicado o "abandono do cargo" pelo presidente, foi lida pelo senador Adalberto Sena uma carta, enviada pelo então chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, que comunicava aos legisladores que Jango e seus ministros estavam em Porto Alegre, ou seja, que não tinham abandonado o país. Não foi por outro motivo que, em 21 de novembro de 2013, reconhecendo a ilegalidade cometida naquela madrugada de 1964 - quando o estado de vacância do cargo da presidência foi declarado mesmo estando João Goulart em solo brasileiro -, o Congresso Nacional anulou a sessão do dia 2 de abril de 1964. Sobre o cinismo reinante entre aqueles que presidiram a sessão que declarou o abandono do cargo por Jango, é curioso analisar as Atas do Senado, na sessão realizada naquele mesmo dia 2 de abril de 1964, às 14 horas e 30 minutos. Depois de ouvir as loas do vice-líder da UDN, o senador pelo Espírito Santo, Eurico Rezende, à "revolução cívica" sacramentada pela sessão realizada naquela madrugada, Oscar Passos, representante do PTB do Acre, protestou contra a forma "brutal, ilegal e violenta" como se processou a sessão que declarou vaga a Presidência da República. E completou: "Embora o presidente eleito estivesse dentro do território nacional, declarou-se vago o cargo e foi empossado seu substituto legal". Em resposta ao companheiro de parlamento, Rezende se limitou a declarar que a constatação da ilegalidade da ação tomada pelo Congresso "demandaria um estudo mais amadurecido". Eles estavam plenamente cientes de que agiam à margem da legalidade, e respondiam às objeções com o cinismo, puro e simples. [4]


Havia uma revolução comunista em curso no Brasil?

Não. O PTB, partido de Jango, militava pelas reformas de base e tinha entre seus principais quadros figuras abertamente anti-comunistas. O PCB, força hegemônica nas esquerdas, seguia uma linha reformista e não revolucionária. As posições do partido, reafirmadas no V Congresso do PCB, de 1960, eram de aliança com a burguesia nacional, para a modernização do país e a superação do latifúndio e do imperialismo - eram propostas nacionalistas e modernizadoras, enfim. [5] Parte dessas resoluções foram mantidas, inclusive depois do golpe de 1964. Em seu VI Congresso, realizado em 1967, o PCB se posicionou contra a adoção do método da luta armada como forma de enfrentamento da ditadura. Essa resolução levou a diversas dissidências no interior do PCB, que terminaram por originar os principais grupos guerrilheiros que atuaram no país entre fins da década de 1960 e meados da de 1970. [6]


Isso significa que não existia luta armada antes do golpe de 1964?

Não. Existiam pequenos grupos guerrilheiros, inspirados no maoismo ou embalados pelo sucesso da Revolução Cubana que desenvolveram treinamentos de guerrilha antes do golpe de 1964. É o caso, por exemplo, do Movimento Revolucionário Tiradentes, braço das Ligas Camponesas, que chegou a enviar militantes para treinar em Cuba. Eram, contudo, movimentos pequenos e incipientes, fáceis de serem desbaratados. [7] Ademais, o combate a pequenos grupos armados não justifica a instalação de uma ditadura. A Itália, por exemplo, combateu grupos guerrilheiros na década de 1970, que chegaram a assassinar o ex-primeiro ministro do país, Aldo Moro, durante a vigência de um regime democrático alicerçado no "Compromisso Histórico" entre os Democratas Cristãos e o Partido Comunista Italiano. [8]


As atividades guerrilheiras contra a ditadura devem ser consideradas "crimes comuns"?

Não. Podemos debater sobre a eficácia ou não da luta armada, sobre as inspirações democráticas ou autoritárias de seus membros, mas não podemos negar que, no pensamento ocidental, existe uma larga tradição que considera legítimo o direito à resistência contra a tirania. John Locke, por exemplo, é pontual a respeito da possibilidade de uso de violência pelos indivíduos, quando o contrato social é rompido unilateralmente: “Onde termina a lei, começa a tirania, se a lei for transgredida para prejuízo de outrem. E todo aquele que, investido de autoridade, exceda o poder que lhe é conferido por lei e faça uso da força que tem sob seu comando para impor ao súdito o que a lei não permite, deixa, com isso, de ser magistrado e, agindo sem autoridade, pode ser combatido, como qualquer outro homem que pela força invade o direito alheio". [9]

O direito à rebelião contra a tirania, fundamental em qualquer democracia moderna que se sustente na noção de “soberania popular”, influenciou diversas legislações desde, pelo menos, a Revolução Francesa e a Independência dos EUA. A constituição brasileira de 1946 era taxativa: “Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”. A de 1988 é ainda mais direta: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. [10]

Importante assinalar, entretanto, que não obstante essa tradição filosófica e constitucional que fundamenta o direito à resistência, a Lei da Anistia (Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979), no parágrafo 2º do Art. 1º, excetuou do benefício à anistia: “os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. [11] Ou seja, os guerrilheiros tiveram que cumprir suas penas, diferente dos torturadores, que puderam perdoar a si mesmos.


É justificável o uso de tortura no combate à guerrilha?

Não. Antes de mais nada, é preciso advertir que, diferente do que a memória de setores ligados à ditadura pretende nos convencer, o recurso à perseguição, assassinato e tortura não foi utilizado apenas contra guerrilheiros. [12] E, ainda que o fosse, não teria qualquer amparo legal ou moral. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 5º, estabelece que: “Ninguém será submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”. Na mesma linha, o art. 17º da III Convenção de Genebra, que trata de crimes de guerra, determina: “Nenhuma tortura física ou moral, nem qualquer outra medida coerciva poderá ser exercida sobre os prisioneiros de guerra para obter deles informações de qualquer espécie. Os prisioneiros que se recusem a responder não poderão ser ameaçados, insultados ou expostos a um tratamento desagradável ou inconveniente de qualquer natureza”. Tortura é crime imprescritível, inclusive se usada em situações de guerra. [13]

"Para que nunca se esqueça, para que nunca mais aconteça."


Referências:

[1] BARBÉ, Carlos. Golpe de Estado. In: BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: Editora da UNB, 1998, p. 545-547. OBSERVAÇÃO DO EDITOR: É interessante analisar também o significado do termo "revolução", que também aparece na forma de um verbete no Dicionário de Política citado pelo autor. No vocabulário político, o termo "revolução" se refere a movimentos que geram transformações radicais na ordem social, econômica e política de uma sociedade. "Revolução", portanto, tem um significado bem diferente de "Golpe de Estado". Ver: PASQUINO, Gianfranco. Revolução. In: BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: Editora da UNB, 1998, p. 1121-1131.

[2] O telegrama pode ser consultado na página "Arquivos da Ditadura", que conta com documentos reunidos por Elio Gaspari. Disponível em: <http://arquivosdaditadura.com.br/documento/galeria/telegrama-americano-anuncia-golpe>. Acesso em 31 mar. 2019.

[3] Os dados podem ser consultados em: MELO, Demian Bezerra. A opinião pública às vésperas do golpe de 1964. Marx e o Marxismo, v. 2, n. 2, 2014. Disponível em: <http://www.niepmarx.blog.br/revistadoniep/index.php/MM/article/view/50/53>. Acesso em 31 mar. 2019.

[4] Um resumo da sessão que declarou a vacância da presidência pode ser encontrado na página do Senado Federal: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2013/11/14/tumulto-marcou-sessao-que-decretou-vacancia-do-cargo-de-jango-em-64>. Acesso em 31 mar. 2019. Sobre a anulação pelo Congresso da sessão realizada na madrugada de 2 de abril, ver: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2013/11/21/congresso-anula-sessao-que-afastou-jango-e-abriu-caminho-para-o-golpe-de-1964>. Acesso em 31 mar. 2019. Para o debate a respeito da legalidade da declaração de vacância da presidência travado na tarde do dia 2 de abril, no Senado, consultar os Anais do Senado (Livro 4, 1964): <https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/pdf/Anais_Republica/1964/1964%20Livro%204.pdf>. Acesso em 31 mar. 2019.

[5] Para um breve resumo da trajetória do PCB e suas posições em diversas conjunturas, ver o verbete "Partido Comunista Brasileiro", da FGV-CPDOC, disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/partido-comunista-brasileiro-pcb>. Acesso em 31 mar. 2019. OBSERVAÇÃO DO EDITOR: Para mais detalhes sobre o quão frágil é essa ideia de que haveria uma suposta revolução comunista em curso no Brasil, ver a esclarecedora matéria publicada em 2018 no The Intercept: <https://theintercept.com/2018/09/21/farsa-historia-ditadura-militar-comunista/>. Acesso em 31 de março de 2019.

[6] Para um resumo da resolução do VI Congresso e seus efeitos, consultar a página do Memorial da Democracia: <http://memorialdademocracia.com.br/card/pcb-fecha-questao-contra-luta-armada>. Acesso em 31 mar. 2019.

[7] Para uma breve descrição do Movimento Revolucionário Tiradentes, consultar o verbete sobre o assunto produzido pela FGV-CPDOC: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/movimento-revolucionario-tiradentes-mrt>. Acesso em 31 mar. 2019.

[8] Sobre os "Anos de Chumbo", na Itália, ver reportagem do Nexo Jornal: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/01/14/O-que-foram-os-anos-de-chumbo-na-It%C3%A1lia-de-Cesare-Battisti>. Acesso em 31 mar. 2019.

[9] LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 563-564.

[10] É possível acessar a Constituição de 1946 em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1940-1949/constituicao-1946-18-julho-1946-365199-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em 31 mar. 2019. O acesso à Constituição de 1988 pode se dar pelo link: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 31 mar. 2019.

[11] Para ler a Lei da Anistia na íntegra, acessar: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm>. Acesso em 31 mar. 2019.

[12] Para ficarmos em um caso revelado recentemente, ver o depoimento de Paulo Coelho: <https://www.washingtonpost.com/opinions/2019/03/29/paulo-coelho-i-was-tortured-by-brazils-dictatorship-is-that-what-bolsonaro-wants-celebrate/?utm_term=.97a8a6cb487b>. Acesso em 31 mar. 2019.

[13] Para consultar a Declaração Universal dos Direitos Humanos na íntegra: <https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf>. Acesso em 31 de março de 2019. A III Declaração de Genebra está disponível na íntegra em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Sistema-Global.-Declara%C3%A7%C3%B5es-e-Tratados-Internacionais-de-Prote%C3%A7%C3%A3o/iii-convencao-de-genebra-relativa-ao-tratamento-dos-prisioneiros-de-guerra-1949.html>. Acesso em 31 mar. 2019.



terça-feira, 26 de março de 2019

A Formação da Itália e a Formação da Alemanha

Olá a todos,

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Atenciosamente,

Prof. Dr. Rodrigo Francisco Dias