(*) Este texto foi escrito por María R. Sahuquillo e foi originalmente publicado no site do jornal El País, no dia 08 de abril de 2019. As imagens que ilustram o texto também foram retiradas da publicação original do site do jornal. Para ver o texto conforme o publicado no site de origem, clique aqui (acesso em: 09 abr. 2019).
George Shajet segura uma foto de seu avô, um engenheiro que foi alvo de represálias em 1934, em Moscou.
Na
casa de George Shajet seu avô era inominável. Um segredo perigoso e aterrador.
Ainda hoje, este ator russo de 73 anos, de rosto comprido e olhar triste, tem
dificuldades em pronunciar seu nome. “Pavel Zabotin, engenheiro”, diz, muito
sério. Faz poucos anos que constatou o que sempre, no fundo, havia suspeitado.
Seu avô tinha sido declarado “inimigo do povo”. Sentenciado e executado a tiros
em 1934 por ordem da chamada Troika Especial, a comissão extrajudicial da NKVD
(o Comissariado do Povo para os Assuntos Internos da União Soviética,
antecessor da KGB). Tinha 45 anos. Desde que soube disso, Shajet investiga
seu caso. Busca preencher esses enormes buracos da história familiar. “Preciso
saber. E reabilitar sua memória”, salienta.
Pouco
a pouco, Shajet coloca sobre a mesa de um esfumaçado café de Moscou o
que resta de seu avô Pavel. Um par de retratos fotográficos de época, que o
mostram como um homem sério, de rosto arredondado e bigode. A foto de uma
reunião familiar. Um cartão de visitas. É tudo. Depois de achar o nome do
engenheiro retaliado nos densos arquivos da ONG de direitos humanos Memorial,
que se dedica a preservar a memória histórica dos crimes do stalinismo, Shajet
pediu informações a todas as instituições oficiais. Sem sucesso. Agora, suas
esperanças vão se apagando. Há poucas semanas, vários tribunais russos
ampararam o direito do Serviço Especial de Segurança (FSB) — guardião dos
documentos da NKVD — de negar o acesso a esses arquivos. E determinaram
que fossem lacrados.
Nesses
documentos estão os nomes dos verdugos de Pavel Zabotin. E de quem condenou ao
Gulag o avô de Serguei Prudovski, cuja solicitação à FSB desencadeou uma das
derrotas judiciais. O acesso a esses documentos “poderia prejudicar tanto os
familiares vivos dos funcionários que assinaram os protocolos como a avaliação
objetiva do período histórico 1937-1938”, segundo a principal assessora
jurídica da FSB, Yelena Zimatkina. Ou seja, os anos do Grande Expurgo,
conhecidos na Rússia moderna como o Grande Terror (ou o 37), quando
as ondas repressivas do stalinismo alcançaram seu apogeu.
Mais
de um milhão de pessoas foram fuziladas. Quatro milhões, enviados a campos de
trabalho. Quase 6,5 milhões foram deportados durante os expurgos da ditadura
de Josef Stálin (1878-1953). Socialistas, anarquistas, membros do
Partido Comunista Soviético, opositores, qualquer que desse sinais de ser um
“inimigo do povo”.
Fotos e fichas de expurgados na época soviética nos arquivos da ONG Memorial, em Moscou.
“Ao
todo são quase 12 milhões de pessoas que deveriam ser reabilitadas”, diz Yan
Rachinski, diretor da Memorial. Em seu escritório acumulam-se várias caixas,
que são só uma pequena parte da enorme base documental que a organização vem
reunindo ao longo dos anos. Para muitos, é a única possibilidade de conhecer o
passado. A lei obriga a desclassificar os documentos que têm mais de 75 anos.
Mas na prática, os arquivos da NKVD e suas troikas — as comissões
extrajudiciais tinham três membros que, depois de uma investigação simplificada
e sem julgamento, emitiam sentenças e condenações — são quase
inacessíveis. “E a situação é cada vez mais difícil”, observa o reputado
historiador.
Em
meados de março, um tribunal de Novosibirsk (Sibéria) negou ao pesquisador
Denis Karagodin o acesso a documentos do caso de seu bisavô, Stepan Karagodin,
e de outros retaliados. Uma medida grave. Até então, havia livre acesso aos
arquivos estatais — que armazenavam os dossiês do Partido Comunista, os
únicos liberados — como o de Novosibirsk, que prepara agora a instalação
de uma estátua de Stálin, financiada e reivindicada pelo Partido Comunista
local. Uma bofetada na terceira maior cidade da Rússia, que o ditador visitou
só uma vez e que já acolhe um monumento aos retaliados políticos.
Serguei Prudovski, empresário e historiador, investiga a história de seu avô.
“[O
FSB] não quer que se demonstre que, com acusações inventadas e julgamentos sem
garantias, milhões de pessoas foram executadas e duramente condenadas”, diz,
indignado, o historiador e empresário Sergei Prudovski. Seu avô, Stepan
Kuznetsov, foi um dos chamados russos de Harbin, cidadãos enviados para
construir a Ferrovia do Leste da China. Ao voltarem, em 1935, foram recebidos
como heróis. Dois anos depois, começou sua repressão. Foram considerados
espiões ou agentes estrangeiros do Japão ou da Alemanha, e milhares
deles foram executados.
Kuznetsov
foi parar nos campos de trabalhos forçados. Lá passou quase 20 anos. De volta a
Moscou, relatou em dois cadernos de memórias a penosa vida no Gulag. Prudovski
encontrou-os. E desde então se dedica a investigar o que aconteceu com os
russos de Harbin. Seu avô, conta em seu escritório, num bairro dos subúrbios de
Moscou, tinha compilado uma lista de 20 nomes de outros retaliados. E daí foi
puxando o fio da meada. E não se cansará de fazê-lo. “Vou percorrer todas as
instâncias para ter acesso aos casos”, afirma.
A
recuperação da memória histórica é um tema enormemente espinhoso na Rússia, que
ainda vive à beira de uma amnésia histórica. O corpo de Stálin foi tirado do
mausoléu de Lênin em 1961. Entretanto, ainda está enterrado na praça Vermelha,
diante da muralha do Kremlin. E a cada ano, no aniversário de sua morte,
dezenas de pessoas vão até lá deixar flores.
Funcionária observa os arquivos da ONG Memorial, na capital russa.
No
país euroasiático, 19% dos jovens dizem não saber nada sobre a repressão
stalinista, e 26% têm dificuldades de caracterizá-la, segundo uma pesquisa de
2016 do Centro Levada, uma instituição independente. E, embora nos últimos anos
tenham sido erguidos monumentos em memória das vítimas — o
presidente Vladimir Putin inaugurou um deles em 2017 — e
colocadas algumas placas nas casas onde viveram os retaliados, as autoridades
evitam o debate. “Putin condena honestamente as repressões, mas reconhecer que
o Estado era criminoso — e na época soviética de fato era — é, para
ele, uma forma de questionar o Estado de hoje”, opina o presidente da ONG
Memorial, que exige o acesso total aos documentos da NKVD.
Ekaterina
Vinokurova, do Conselho de Direitos humanos da Rússia, não tem tanta certeza.
“Pode-se divulgar o nome das vítimas e seus casos, mas tenho dúvidas quanto aos
membros das troikas e os executores. Isso pode deixar a sociedade fragmentada e
criar um clima de ódio”, considera a ativista, que há alguns dias também
colabora com a emissora estatal RT.
Yan Rachinski, presidente da ONG Memorial.
A
Memorial — que foi definida pelas autoridades como um “agente
estrangeiro”, o que dificulta seu trabalho — não tem notícia de que algo
assim tenha ocorrido alguma vez. Na verdade, há casos de familiares de
executores que contataram parentes de retaliados para lhes pedir perdão. Como
no caso da família Karagodin, que recebeu uma carta de desculpas de uma das
netas de seu verdugo.
“Estão
enterrando a memória histórica”, diz, aflito, o ator Shajet. Com os poucos
dados que conseguiu e alguns fragmentos de conversas familiares que ouviu na
sua infância, desenhou a figura de Pavel Zabotin. O homem, que tinha sido
engenheiro militar e depois engenheiro civil, foi detido por supostamente
roubar material numa das obras onde trabalhava para depois vendê-lo, conta
Shajet quase aos prantos: “Mas as troikas da NKVD não se ocupavam desses
crimes. Se a verdade for descoberta, me doerá, mas quero saber. É a história da
minha família, da minha pátria; porque minha família é minha pátria”.