(*) Entrevista originalmente publicada no site do Portal Adverso, no dia 11 de fevereiro de 2020. Para ver a entrevista conforme publicada no site de origem, clique aqui.
O Portal Adverso entrevistou o associado da ADUFRGS, professor Rualdo Menegat,
sobre a repercussão do estudo apresentado no Congresso da Sociedade
Norte-Americana de Geologia, em setembro de 2019. O motivo dos povos Incas
terem construído Machu Picchu num lugar tão alto foi o que instigou o geólogo a
desenvolver a pesquisa. Confira a entrevista.
PA
- Do que se trata a pesquisa e o que o instigou a realizá-la?
Menegat
- As
civilizações são geralmente descritas em seus aspectos culturais, como se estes
não tivessem conexão direta com as condições materiais e ambientais
(ecossistemas e geossistemas) onde se desenvolveram em um longo período de
tempo. Reconhece-se a habilidade dos Sumérios para lidar com o barro das
planícies fluviais, a porcelana das argilas dos que habitavam o rio Amarelo
(Huang He) na China, o granito e calcário dos egípcios, o mármore dos gregos e
romanos. Pouco se fala das rochas dos Incas e de como seria possível
desenvolver uma civilização no inóspito e elevado mundo andino. Justo a região
que inspirou grandes teorias científicas como as de Humboldt, Darwin e Troll.
Como
geólogo e conhecendo a região andina, conjecturei que nenhuma civilização
poderia sobreviver ali sem conhecer em profundidade as rochas e as montanhas
dos Andes. Esse conhecimento que hoje chamamos de geologia não poderia estar
ausente nessas culturas andinas. Como Machu Picchu não foi destruída ou
transformada pelos conquistadores espanhóis, ela ainda poderia conter as
informações que eu queria investigar.
Considerei,
inicialmente, que Machu Picchu não poderia ser um caso isolado da estratégia de
sobrevivência dos Incas nos Andes. Não poderia ser construída por um mero
capricho de um governante. Deveria fazer parte de uma prática de construção de
assentamentos em lugares altos e rochosos. Mas o que guiaria essa prática? Que
conhecimento das montanhas e do mundo rochoso os construtores precisavam saber
para ter sucesso na construção de cidades sob essas condições? Essas questões
ainda não haviam sido objeto de pesquisa científica e decidi investigá-las a
fundo.
Para
dar conta dessas questões tive que construir um caminho de integração de dados
e áreas do conhecimento. Quer dizer, além de fazer a análise das condições de
habitabilidade andina – dinâmica das águas, geometria dos blocos rochosos,
morfologia dos terrenos, entre outros – também fazer a síntese e entender o
longo processo de domesticação de montanhas. Pude concluir que os Incas
construíam seus assentamentos em locais onde as falhas geológicas se cruzam e
que eles herdaram essa prática de domesticar falhas a partir de um longo
processo cultural, que remonta pelo menos oito mil anos. Isso significa
entender as condições materiais e ambientais de um impressionante processo
civilizatório que permitiu que a humanidade pudesse sobreviver, em larga
escala, em uma das mais geodinâmicas e inóspitas regiões do planeta: os Andes.
PA
- Porque os Incas construíram Machu Picchu num lugar tão alto?
Menegat
- A
primeira grande questão da habitabilidade humana nos Andes é entender que ali
há áreas que são altamente proibitivas para a vida humana. Se me perguntassem
como geólogo onde seria possível assentar um povoado nessa região, eu
responderia que há vários locais viáveis. Porém, nunca no fundo dos vales
andinos. Embora esses lugares pareçam convidativos, pois se situam em pequenas
faixas planas, com bom solo, margeando abundante água de rios, são extremamente
perigosos. Isso parece ser um contrassenso, pois as chamadas civilizações
antigas como as do Nilo, Hindu, Tigre e Eufrates, e Amarelo se estabeleceram
justamente nas margens de rios. Parece que civilizar é sinônimo de domesticar
rios.
Porém
não nos Andes. Em primeiro lugar, os rios andinos podem mudar subitamente de
volume. Em momento de cheia, se transformam em violentas ‘torrenteras’ que tudo
carregam. Em outros, ficam completamente secos. Essa inconstância pode fazer
com que as plantações sejam varridas pela água, ou dizimadas pela seca. Em
ambos os casos, haverá fome. Em segundo lugar, os fundos de vales andinos são
propensos a serem soterrados por gigantescos escorregamentos de encostas
montanhosas. Não há como gerenciar esses fenômenos. A inteligência determina
que tais áreas sejam proibitivas para assentamentos humanos.
Os
Incas entenderam justamente esses aspectos e, então, procuraram janelas de
habitabilidade em locais mais altos e seguros, porém onde se poderia assentar
um povoado com segurança durante muitos anos. Machu Picchu foi construída
dentro dessa perspectiva. A condição geológica, então, para tornar possível
essa estratégia é a de que a área de assentamento da comunidade esteja em uma
zona de cruzamento de falhas.
PA
- Quais os benefícios de se ter uma cidade construída nesta zona, a 2.300
metros de altitude?
Menegat
- As
falhas geológicas são rupturas das massas rochosas, formando faixas alongadas
de rochas intensamente fraturadas. Como em um pacote de bolachas que alguém
sentou em cima. As linhas de falhas podem ocorrer associadas, formando redes,
como na região de Cusco. Lá, as falhas resultaram de processos geológicos
relacionados à formação da Cordilheira dos Andes. Essa cordilheira se originou
da intensa compressão produzida na borda do continente pelo choque entre a
placa da América do Sul e a placa de Nazca. Isso produz rupturas nas massas
rochosas, fraturando-as. Quanto mais intenso o fraturamento, mais facilmente os
blocos de rochas são removidos pela erosão. Por esse motivo, as redes de falhas
são responsáveis pela morfologia das montanhas, dos vales e também dos blocos
rochosos que vão se desprendendo nas encostas. Agora veja, onde as falhas se cruzam,
as rochas estão ainda mais fraturadas. Portanto, são locais em que há
abundância de blocos soltos na superfície do terreno, possíveis de serem
utilizados para a construção dos muros dos terraços de plantio e casas. Também
ali os blocos previamente fraturados podem ser mais facilmente removidos para
encravar as edificações no substrato rochoso. Além disso, os blocos assumem
formas típicas, como romboedros, triângulos, hexágonos e fractais
(auto-similaridade). Blocos com essas formas podem se encaixar geometricamente
em mosaicos de muros e paredes de edificações. Portanto, a disponibilidade de
blocos pré-fraturados e a possibilidade de esculpir o substrato rochoso para
encravar aí terraços e edifícios são grandes nesses locais. Finalmente, e com
igual importância, é o fato de que as áreas fraturadas por falhas geológicas
acumulam água. Esta fonte de água abastece os moradores e pode ser usada para
irrigar os terraços de plantações. Portanto, essas são as condições geológicas
essenciais que possibilitam construir e habitar locais elevados nas montanhas,
longe do fundo dos vales, que geralmente são soterrados por avalanches e
varridos por inundações torrenciais.
Esses
resultados são surpreendentes quando reconhecemos que o mundo andino é
altamente inóspito. Lá a vida humana é possível apenas em alguns lugares,
exatamente onde a água escorre lentamente através de fraturas. Os Incas sabiam
seguir esse critério, que permitia estabelecer redes de assentamentos nesse
tipo de oásis de habitabilidade proporcionado pelas falhas e fraturas. As
cidades e as plantações não eram grandes, mas o pouco que podia ser produzido
em um local possibilitava trocas com outros locais, resultando em grande
diversidade. Os Incas desenvolveram uma cultura de complementaridade e justaposição
de blocos rochosos e também de alimentos que sustentaram 10 milhões de pessoas
sem fome e sem escravidão. Isso é singular na história humana. Não há outro
exemplo de tamanho sucesso civilizatório em regiões elevadas, inóspitas e
distantes de rios ou costas de mares.
PA
- Como os Incas conseguiam identificar falhas geológicas?
Menegat
- Essa
é uma pergunta muito interessante, pois nós, brasileiros, em geral, vivemos
longe de regiões montanhosas, onde as rochas estão completamente à mostra.
Temos mais facilidade de comentar sobre florestas e vegetais do que sobre
rochas. Mas, nos Andes, é exatamente o contrário: há abundância de imensas
exposições rochosas. Aqueles familiarizados com as montanhas andinas logo
percebem que elas são cortadas por grandes estruturas. Os Incas sabiam
reconhecer zonas intensamente fraturadas e sabiam que elas se estendiam por
longos trechos. E isso por uma razão simples: falhas podem conduzir a água.
Veja: considere uma falha que começa no topo nevado de uma montanha e se estenda
até 3.000 metros para baixo alcançando os vales profundos. O derretimento da
neve na primavera e verão alimenta essa falha e altera a quantidade de água que
flui através dela. Pronto, temos uma evidência que nos permite reconhecer essas
grandes estruturas. Falhas e aquíferos fraturados fazem parte do ciclo da água
no reino andino tanto quanto os rios nas terras baixas. Além disso, existe uma
palavra quéchua para grandes fraturas, que é 'quijllo'. Como disse o grande
escritor peruano José Maria Arguedas, ‘quijllo’ era a palavra utilizada pelos
incas para designar ‘grandes fraturas que atravessam as montanhas’. Os geólogos
chamam isso de falha. Os Incas construíram uma civilização no reino das rochas
fraturadas.
PA
- Como foi desenvolvida a pesquisa e quem financiou?
Menegat
- Comecei
esse trabalho no início dos anos 2000 como tese de doutorado no Programa de
Pós-Graduação em Ecologia da UFRGS. A pesquisa foi desenvolvida com base em
três estratégias. Expedições geológicas de campo, análise de imagens de
satélite em várias escalas e, finalmente, discussão de resultados com várias
comunidades científicas da região andina. As investigações de campo foram
realizadas em quatro expedições em 2001, 2006, 2010 e 2012. A análise das
imagens de satélite foi realizada em laboratório. Também usei várias descrições
geológicas e estudos da região de Cusco e do Vale Sagrado. Na época em que
desenvolvi meu doutorado contava com apoio da CAPES na forma de taxas de
bancada e também com todo o suporte dessa agência aos programas de
pós-graduação no Brasil. Um programa de fomento à ciência e formação científica
exemplar que certamente serviu de modelo a muitos outros países no mundo
inteiro e deveria continuar sendo.
Além
disso, como estratégia de pesquisa, em cada etapa de meu trabalho fui
apresentando os resultados a pesquisadores peruanos de várias áreas do
conhecimento (geologia, arqueologia, antropologia, arquitetura, urbanismo,
ecologia da paisagem e epistemologia) e em várias universidades do Peru e da
América do Sul. Isso foi por motivos éticos – estava pesquisando um tema de
alto interesse para a sociedade peruana e andina – e também como forma de
submeter minhas hipóteses à severa crítica, o que me ajudaria a assegurar a
correção de dados (há diversidade de grafias em espanhol e em runa-simi para um
mesmo topônimo, por exemplo, o que dificulta reconhecer onde inicia e termina
um acidente geográfico como um rio). Ao mesmo tempo, isso me possibilitava
avaliar o alcance e a importância de minhas descobertas para os pesquisadores
da cultura andina e suas comunidades. Por isso, proferi conferências e
seminários nas principais universidades do Peru, e também na Bolívia, Chile,
Argentina, Uruguai, México e Brasil. Como vemos, a descoberta científica tem 1%
de inspiração e 99% de suor e longa persistência.
Recentemente,
tive a oportunidade de apresentar as conclusões dessa investigação no congresso
da Sociedade Norte-Americana de Geologia, realizado em 23 de setembro de 2019,
na cidade de Phoenix, Arizona. A comissão organizadora resolveu, então,
destacar meu trabalho intitulado “How Incas used geological faults to build
their settlements” (Como os Incas utilizaram as falhas geológicas para
construir seus assentamentos), dentre mais de quatro mil aprovados. Isso
significaria difusão em alguns canais de divulgação científica da América do
Norte. Mas, acabou ocorrendo um enorme extravasamento, pois ele foi veiculado
em importantes revistas científicas de todo o mundo, como a Science, Smithsonian
Magazine, Archaeology nos Estados Unidos; ou Spektrum der Wissenschaft, na
Alemanha; Le Monde Science, na França; e a National Geographic, na Espanha.
Além disso, também foi noticiado na chamada grande imprensa, como no Newsweek e
Forbes (EUA), Daily, The Times e BBC (UK), The Australian, La Nación, El
Comercio, entre outros. A notícia foi registrada em 82 veículos de divulgação
científica e de massa, em mais de 30 países.
PA
- O senhor esperava toda essa repercussão?
Menegat
- O
resultado foi muito além do esperado. Em geral, apenas alguns sites da internet
especializados em divulgação científica costumam publicar os melhores trabalhos
desse congresso. Mas no caso dessa investigação sobre Machu Picchu, ele
alcançou importantes mídias científicas e de massa em todos os continentes. Os
nomes da UFRGS, da geologia e do Brasil foram veiculados em 15 línguas, dentre
as quais o persa, o árabe, o coreano, o chinês, o japonês, além das diversas
línguas europeias. Na China, por exemplo, foi noticiado no jornal Cancao
Xiaoxi, o mais popular de Pequim. A National Geographic afirmou que com minha
pesquisa está “Resolvido o mistério do porquê os Incas construíram Machu Picchu
em um lugar tão inacessível”. Esse reconhecimento internacional tem grande
importância para a ciência brasileira e também reforça os temas mais
propriamente sul-americanos de investigação. Como disse o renomado geólogo
brasileiro, Prof. Dr. Yocitero Hasui, “não há paralelo na história da geologia
do Brasil”.