sexta-feira, 20 de novembro de 2020

O racismo e o Dia da Consciência Negra


20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Novamente, a data de hoje foi marcada por intensos debates a respeito do racismo em nosso país. E mais uma vez eu tive o desprazer de ver pessoas dizendo que “falar de racismo é desnecessário”, que “não há racismo no Brasil” e que “tocar no assunto só piora a situação dos negros”.

A pouca valorização da disciplina de História em nossas escolas gerou em grande parte da população brasileira uma assustadora falta de consciência histórica. Como historiador, eu gosto muito de lembrar a frase escrita por Marc Bloch há vários anos: “A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente”. Precisamos refletir seriamente a respeito da nossa própria História. O Brasil é um país no qual, por mais de três séculos, pessoas negras de origem africana foram escravizadas e sofreram com as mais diversas formas de violência: muitos foram espancados, mutilados, mortos e impedidos de manifestarem com total liberdade a sua cultura.

Eu não estou falando de algo que ocorreu somente durante algumas semanas. Eu estou falando de algo que ocorreu em nosso país durante séculos! No Brasil, os corpos negros foram desde o início de nossa História o alvo preferencial de atos de violência. Como esquecermos o fato de que, durante o período da escravidão, negros eram castigados em praça pública diante de todos? Por muito tempo, os negros foram mal vistos no Brasil. Dizia-se que eram perigosos, traiçoeiros e que não eram tão “evoluídos” quanto o homem branco. Essa imagem negativa a respeito dos negros também contribuiu para que, em nosso país, o processo de abolição da escravidão fosse extremamente lento. No século XIX, não eram poucas as pessoas que diziam que os negros não estavam aptos para o trabalho assalariado livre, o que serviu de justificativa para manter o trabalho escravo no Brasil por muitos anos. E mesmo depois da abolição, em 1888, a situação dos negros não melhorou: eles foram abandonados à própria sorte e não houve nenhuma política pública séria para garantir a eles educação, saúde e segurança. O preconceito continuou existindo. Nas primeiras décadas do século XX, a capoeira e o samba – dois significativos elementos da cultura afro-brasileira – eram vistos como “coisa de vagabundo”. E o que dizer então das religiões de matriz africana? Estas sempre foram consideradas em nosso país como “coisa do diabo”, em uma explícita manifestação de preconceito.

E hoje? Quais são os desafios enfrentados diariamente pelas pessoas negras no Brasil? Infelizmente, os casos de racismo continuam existindo. Todos os dias, acompanhamos na imprensa e nas redes sociais situações em que negros são chamados de “macacos”, casos de negros espancados (às vezes até a morte, como no recente episódio ocorrido no supermercado Carrefour, em Porto Alegre-RS [1]), assassinados por policiais ao serem confundidos com bandidos e humilhados de diversas formas apenas por causa da cor da sua pele. É uma dura verdade: os atos de violência praticados contra os negros no Brasil não ficaram apenas no período colonial, eles continuam existindo até os dias de hoje, ainda que sob novas e diferentes formas. Se você acha que atualmente não existe mais racismo, eu proponho o seguinte exercício: sempre que você ver um negro sendo vítima de algum tipo de violência, tente imaginar se naquela mesma situação um branco seria tratado da mesma forma. Pode ser que aí você se dê conta da dimensão do problema do racismo no Brasil.

Como agir diante deste quadro? Há quem diga que o melhor seria evitar falar de racismo, esquecer o nosso passado escravocrata e ignorar o fato de que os negros ainda sofrem com o preconceito. Em uma mistura de ingenuidade, falta de conhecimento a respeito da História do Brasil e desonestidade intelectual, o que essas pessoas procuram no fundo é reafirmar o mito da “democracia racial” em nosso país, como se, por meio de um truque de mágica, toda violência e discriminação das quais os negros têm sido vítimas simplesmente pudessem desaparecer só de não se falar mais nelas. O que essas pessoas buscam é recuperar a equivocada ideia segundo a qual o Brasil seria um país sem conflitos, “abençoado por Deus e bonito por natureza”.

É preciso termos consciência a respeito de todos os episódios de violência que ocorreram ao longo da História do Brasil. É preciso admitirmos que, ainda no tempo presente, o nosso país continua sendo marcado pelo racismo. Talvez algumas pessoas se sintam incomodadas quando se fala a respeito de assuntos como esses. Mas não é jogando a poeira para debaixo do tapete que se limpa uma casa. Por isso é importante falar e debater seriamente sobre o problema do racismo a partir de uma perspectiva histórica. Da mesma forma que um paciente procura um psicólogo ou um psicanalista para tentar aprender a lidar com os seus próprios traumas, a sociedade brasileira precisa aprender a lidar com as difíceis memórias acerca de sua própria História. Por isso é importante falar, debater, denunciar casos de racismo e colocar os racistas em seu devido lugar, ou seja, na cadeia. Afinal, racismo é crime e deve ser duramente combatido.

Ignorar um problema não será jamais a melhor forma de resolvê-lo e de evitar que ele traga perigosas consequências. O racismo é um problema que precisa ser enfrentado de frente. E para aqueles que se sentirem incomodados quando abordarmos o assunto, faço questão de lembrar que, como bem disse Peter Burke, “a função do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer”.

Prof. Dr. Rodrigo F. Dias

[1] HOMEM NEGRO é espancado até a morte em supermercado do grupo Carrefour em Porto Alegre. G1, 20 nov. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2020/11/20/homem-negro-e-espancado-ate-a-morte-em-supermercado-do-grupo-carrefour-em-porto-alegre.ghtml>. Acesso em: 20 nov. 2020.