sábado, 21 de julho de 2018

Alguns Relatos de Cronistas da Época das Grandes Navegações


Alguns dos europeus que se aventuravam pelos mares durante as Grandes Navegações dos séculos XV e XVI costumavam registrar os fatos que aconteciam durante as viagens em diários e cartas. Esses materiais são documentos importantes para o estudo daquelas navegações, pois nos revelam, entre outras coisas, a visão de mundo daqueles homens, bem como nos oferecem informações sobre as terras e as populações que foram encontradas na América.

O próprio Cristovão Colombo registrou em seus diários a sua versão da viagem financiada por Fernando e Isabel – os “reis católicos” da Espanha – que o trouxe ao continente americano. O relato de Colombo é rico em descrições da viagem e da própria chegada à América – embora o navegador genovês pensasse ter chegado ao oriente –, apresentando ainda detalhes da fauna e da flora locais. Colombo escreveu também sobre as populações indígenas que encontrou e como foram os primeiros contatos com aquelas pessoas. Chamaram-lhe a atenção o fato de aqueles homens e mulheres andarem nus, terem os corpos “bonitos”, serem “amigáveis” e serem dispostos a trocar objetos com os europeus. Ainda segundo a descrição feita por Colombo, os índios pareciam ser de fácil conversão à fé católica e aparentavam ser “bons serviçais”. Ademais, o genovês se admirou com o fato de não existirem nem índios de pele negra nem índios de pele branca, visto que eles eram da “cor dos canários”. Em seus diários, é visível o interesse do navegador por metais preciosos, em especial pelo ouro. Colombo registrou ainda que mandou capturar alguns índios para que fossem enviados à Espanha e aprendessem a língua dos colonizadores. O navegador também afirmou em algumas passagens que seria aparentemente fácil subjugar aqueles povos, demonstrando ter a ideia de tomar e garantir a posse daquele território (COLOMBO, 1991).

O texto escrito por Cristovão Colombo não apenas descreve os detalhes da aventura por ele vivida, mas é também um documento que nos permite vislumbrar os interesses envolvidos na empresa das navegações, a saber, a busca por riquezas e o desejo de levar a fé católica a outros lugares do mundo. Assim, ao destacar a facilidade com a qual seria possível dominar os povos encontrados, o que Colombo pretendia era encorajar mais viagens, e, consequentemente, a própria empresa colonizadora.

Por sua vez, a expedição que trouxe Pedro Álvares Cabral ao litoral do território que daria origem ao Brasil contou com a presença de Pero Vaz de Caminha (Porto?, 1450 – Calecute, 1500), o escrivão da armada que registrou os detalhes desta viagem em uma carta. Segundo Antonio Carlos Olivieri e Marco Antonio Villa, a “Carta do achamento” do Brasil escrita por Caminha foi redigida “entre os dias 26 de abril e 1° de maio de 1500” e tinha como objetivo “informar ao rei de Portugal, dom Manuel I, o descobrimento e apresentar-lhe o que aí se encontrou”. Ainda de acordo com os pesquisadores, a carta tem um “estilo claro” e a “objetividade que convém a um relatório”. Por sua vez, os fatos são apresentados em “ordem cronológica”, e revelam o que aconteceu entre os dias 09/03/1500, data do começo da viagem, e 02/05/1500, quando a expedição deixou o Brasil (OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 17).

É curioso perceber que Caminha se diz, de maneira humilde no início da carta, um ignorante, e que não registrará nada mais do que aquilo que viu e que lhe pareceu (CAMINHA, 2006, p. 19), tentando assim se mostrar o mais objetivo possível em seu relato. A terra foi avistada no dia 21 de abril por meio de um “grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o monte Pascoal e à terra – a Terra de Vera Cruz” (CAMINHA, 2006, p. 20).

Já sobre os primeiros contatos com os índios, Caminha escreveu: “Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijamente sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles pousaram” (CAMINHA, 2006, p. 20). O escrivão registrou ainda a barreira linguística que dificultava a comunicação com aquelas pessoas – não foi possível “deles haver fala” –, mas destaca também que o primeiro contato foi pacífico e que houve entendimento entre os dois grupos por meio da relação de troca de objetos (Cf. CAMINHA, 2006, p. 20-21).

Em seguida, Caminha relatou um momento de confraternização entre índios e europeus: “Diogo Dias [...] levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles [os índios] a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da sua gaita” (CAMINHA, 2006, p. 21). Todavia, em outra passagem, o escrivão afirmou que os indígenas nem sempre ficavam tão próximos dos brancos: “Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem, logo duma mão para a outra se esquivavam [...] e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar” (CAMINHA, 2006, p. 22). Assim, os índios foram vistos por Caminha como seres que deviam ser tratados com um certo cuidado, afinal, era preciso garantir que eles ficassem “mansos” em relação à presença dos europeus.

A impressão que os índios causaram em Caminha foi boa: “os corpos seus são tão limpos, tão gordos e formosos, que não pode mais ser”, “Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam” (CAMINHA, 2006, p. 22).

Em outra passagem do texto, Caminha falou da tentativa de cristianização dos índios: “E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção” (CAMINHA, 2006, p. 23).

O escrivão fez questão de complementar ainda: “E, segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tomados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram ambos. Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha. Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação”. (CAMINHA, 2006, p. 24-25).

Assim, de maneira parecida ao que fizera Colombo, Pero Vaz de Caminha salientou em seu relato a possibilidade de converter os índios à fé católica, utilizando para isso descrições do comportamento aparentemente dócil daquelas pessoas. Cabe ainda dizer que em outras passagens da carta, Caminha se mostra encantado com os recursos naturais do lugar e demonstra uma constante preocupação em encontrar metais preciosos.

O frade franciscano francês André Thevet (Angoulême, 1502 – Paris, 1590) viajou com Villegaignon para o Brasil em 1555 com o intuito de estabelecer aqui uma colônia francesa batizada de França Antártica. Permaneceu em solo americano de novembro de 1555 a janeiro de 1556. Thevet assim descreveu os índios do lugar: “esta terra foi e é ainda hoje habitada por gente prodigiosamente estranha e selvagem, sem fé, sem lei, sem religião, sem civilidade nenhuma, que vive como os animais irracionais, do modo como a natureza a fez, comendo raízes, andando sempre nua (tanto homens quanto mulheres), e isso talvez até que, convivendo com os cristãos, aos poucos se despoje dessa brutalidade, passando a vestir-se de modo mais civilizado e humano. No que devemos efetivamente louvar o Criador, que nos esclareceu, não permitindo que fôssemos assim brutais, como estes pobres americanos” (THEVET, 2006, p. 60).

Como se vê, Thevet descreveu os índios julgando-os a partir dos padrões europeus de comportamento. Desse modo, as pessoas do continente americano foram vistas como inferiores em relação ao homem civilizado vindo da Europa, portador este da razão, da verdadeira fé e dos bons modos. O olhar de Thevet, portanto, é marcado por uma perspectiva etnocêntrica.

Thevet registrou ainda uma crença da população indígena: “os nossos selvagens fazem menção a um grande Senhor, que na língua deles se chama Tupã e que, morando no céu, faz chover e trovejar. Mas não têm eles maneira nem hora de orar a esse deus ou de cultuá-lo, assim como tampouco há lugar próprio para isso” (THEVET, 2006, p. 61). Mais uma vez, o etnocentrismo se manifesta, pois Thevet avalia a crença indígena a partir dos modelos europeus de religiosidade, com seus templos e rituais.

Thevet detalhou ainda as relações entre indígenas e europeus: “Assim que esta terra foi descoberta, [...] esses selvagens, espantados ao verem as feições e os modos dos cristãos (que nunca antes haviam visto), tomaram-nos por profetas e os homenagearam como se fossem deuses. E essa canalha assim fez até que, percebendo estarem eles sujeitos a doenças, morte e paixões semelhantes às suas, começou a desprezá-los e a tratá-los pior que de costume, como ocorreu com todos os que depois chegaram, espanhóis e portugueses. De modo que, se esses selvagens ficarem irritados, não custarão a matar um cristão e a comê-lo, como fazem com seus inimigos. Mas isso ocorre em alguns lugares, especialmente entre os canibais, que não vivem de outra coisa, como fazemos aqui com bois e carneiros” (THEVET, 2006, p. 61).

Temos aqui, em verdade, uma diferença importante em relação aos relatos anteriormente citados e analisados. Thevet aponta para a ocorrência de conflitos entre indígenas e europeus, destacando com sua perspectiva etnocêntrica a crueldade da antropofagia praticada pelos indígenas. Contudo, é preciso esclarecer que o hábito de comer carne humana, uma prática de algumas populações indígenas que habitavam o território que viria a ser o Brasil, não era simplesmente uma opção alimentar, como parece pensar Thevet, mas sim um ritual místico-religioso.

Outro francês, Jean de Léry (La Margelle, 1534 – Berna, 1611), um homem de família burguesa e calvinista que, quando jovem, começou a estudar teologia, também viajou para o Brasil em 1556 para se estabelecer na colônia francesa fundada por Villegaignon. Retornou para a Europa em 1558, fixando-se em Genebra, onde concluiu os estudos em teologia e tornou-se ministro protestante. A sua narrativa sobre o período que passou no Brasil, quando conviveu com os índios, foi escrita dezoito anos depois do período que passou nestas terras e foi publicada em 1578, fazendo sucesso junto ao público leitor europeu e sendo traduzida para o holandês, o alemão e o latim (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 67-68).

Ao descrever os índios, Léry destacou como se fazia a justiça entre aquelas populações onde, segundo o seu relato, tudo era baseado no princípio de “vida por vida, olho por olho, dente por dente”. Contudo, mesmo narrando algumas brigas e alguns conflitos que ocorriam entre os índios, o francês salientou que, na maior parte do tempo, os índios se davam bem entre si e viviam em paz uns com os outros (Cf. LÉRY, 2006, p. 69). Em seu relato, Léry aponta para o fato de os índios não se fixarem em um único local, mas viverem mudando de região. É comum no texto do francês a opinião de que certos costumes indígenas são melhores que os dos europeus, como é o caso do hábito de dormir em redes: “pergunto a quem as experimentou se de fato não é melhor nelas [nas redes] dormir, principalmente no verão, do que em nossas camas comuns” (LÉRY, 2006, p. 71).

Sobre as mulheres indígenas, Léry descreveu os trabalhos domésticos feitos por elas. Já sobre a forma como índios recebem as pessoas, o francês escreveu: “nossos tupinambás recebem com grande humanidade os estrangeiros amigos que os vão visitar, ainda que os franceses e outros daqui que não entendam a língua deles se sintam no começo admirados e assombrados” (LÉRY, 2006, p. 72). Sobre a sua primeira visita a uma aldeia, Léry registrou: “senti-me aturdido com aquela gritaria e correria pela aldeia com meus equipamentos [um pouco antes, Léry contara que os índios haviam pegado seu chapéu, sua espada, seu cinto, e seu casaco], o que não só me fazia pensar que tinha perdido tudo como também me deixava sem saber onde estava” (LÉRY, 2006, p. 73). Contudo, Léry esclarece em seguida que fazia parte dos modos indígenas brincar com as coisas alheias por um tempo, mas que depois devolviam tudo ao dono (Cf. LÉRY, 2006, p. 73).

No que diz respeito à antropofagia, temos que a presença deste hábito entre os índios amedrontou Léry: “E estava eu tão cansado, querendo apenas repousar, que, depois de comer um pouco de farinha de raízes e de outros alimentos que nos haviam oferecido, estendi-me e fiquei deitado na rede na qual me havia sentado. Mas não dormi, porque, além do barulho que os selvagens fizeram a noite toda em meus ouvidos com aquelas danças e assobios, a comerem o prisioneiro, um deles, trazendo na mão um dos pés deste, cozido e tostado, aproximou-se de mim e perguntou-me (como soube depois, porque então não entendi) se queria um pedaço; comportamento este que provocou em mim tanto pavor que nem cabe perguntar se perdi toda a vontade de dormir. Pois como eu acreditasse que aqueles sinais e aquela exibição da carne humana, que ele devorava, eram uma ameaça, e que ele estivesse dizendo e dando a entender que em breve eu estaria com aquele aspecto, e como uma dúvida puxa outra, logo desconfiei que o intérprete, traindo-me deliberadamente, me havia abandonado, deixando-me nas mãos daqueles bárbaros. E se eu tivesse visto alguma abertura para sair e fugir dali, não teria hesitado. Mas vendo-me cercado de todos os lados por aquela gente cujas intenções ignorava (pois, como se saberá, eles não pensavam de modo algum em fazer-me mal), acreditava eu firmemente e previa mesmo que seria devorado, o que me fez invocar Deus em meu coração durante toda aquela noite” (LÉRY, 2006, p. 74).

Apesar do temor descrito neste episódio, Léry assume uma postura interessante, ao tentar valorizar certos aspectos da cultura indígena. Ao falar de como os índios recebiam os seus visitantes, salientando que aqueles povos ofereciam comida, bebida e lugar onde dormir a quem chegasse amigavelmente às suas aldeias, Léry é capaz de afirmar o seguinte: “tendo eu vivido com eles, confiaria mais neles e de fato estava mais seguro em meio àquele povo que chamamos selvagem do que me sinto hoje em alguns lugares de nossa França, com franceses desleais e degenerados: falo daqueles que assim são, pois quanto à gente de bem, de que graças a Deus o reino ainda não está desprovido, muito me entristeceria denegrir sua honra” (LÉRY, 2006, p. 79).

Como o nosso leitor pode observar, Léry procurou compreender o comportamento dos índios registrando certo estranhamento por um lado, mas em contrapartida também chamando a atenção para aspectos positivos daquelas populações, revelando que seus preconceitos em relação a aquelas pessoas caíam por terra quando os conhecia melhor. Assim, a postura de Léry é emblemática quando se pensa nas formas como os homens lidam com as diferenças culturais ao longo do tempo. Pode-se dizer que Léry revelou possuir um certo senso de relatividade dos costumes – o que é estranho para um grupo, pode não ser para outro – e também uma simpatia para com os indígenas, o que lhe permitiu melhor compreendê-los.   

Outro relato interessante que foi produzido no contexto das grandes navegações é o de Hans Staden, homem de quem poucos dados biográficos existem. Sabe-se que viveu no século XVI, tendo nascido em Hessen, na Alemanha. Staden viajou duas vezes ao Brasil, na primeira foi à região de Pernambuco em 1547, de onde retornou a Portugal no ano seguinte, e, na segunda, em 1550, estabeleceu-se na região de São Vicente. Entre meados de janeiro e 31 de novembro de 1553, Staden foi prisioneiro dos tupinambás, em um período no qual era frequentemente ameaçado de morte e de ser devorado em um ritual da tribo. O seu relato sobre suas aventuras foi publicado pela primeira vez em 1557, em Hessen, e foi posteriormente traduzido para o flamengo, o holandês, o latim e o francês (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 83).

Sobre o seu aprisionamento, Staden escreveu: “Quando entrei [em uma casa dos índios], correram as mulheres ao meu encontro e me deram bofetadas, arrancando a minha barba e falando em sua língua: ‘Che anama pipike aé’, o que quer dizer: ‘Vingo em ti o golpe que matou o meu amigo, o qual foi morto por aqueles entre os quais tu estiveste’. Conduziram-me, depois, para dentro de casa, onde fui obrigado a me deitar em uma rede. Voltaram as mulheres e continuaram a me bater e maltratar, ameaçando de me devorar” (STADEN, 2006, p. 85).

Vale destacar que durante o período em que passou com os índios, Hans Staden aprendeu muito sobre a vida da tribo. No que diz respeito ao casamento, por exemplo, Staden registrou em seu relato que a maioria dos índios do sexo masculino tinha apenas uma mulher, mas os mais importantes do grupo tinham mais de uma, podendo chegar a 13 ou 14 esposas, que em geral se davam bem entre si (Cf. STADEN, 2006, p. 86).

Na narrativa de Hans Staden o que chama a atenção é a descrição dos modos como os indígenas tratavam os seus inimigos. Depois de aprisionado, o inimigo era trazido para a casa de algum indígena, onde recebia bofetadas de mulheres e crianças, era enfeitado com penas pardas, tinha as sobrancelhas cortadas e era amarrado para que não fugisse. Uma mulher o guardava e tinha relações com ele. Se ela concebesse um filho, a criança seria educada até ficar grande, e, quando fosse a vontade da tribo, ela seria morta e devorada. Quanto ao prisioneiro, era tratado por algum tempo com boa comida, porém, quando chegasse o dia do sacrifício, ele era amarrado com uma corda comprida. Selvagens de outras tribos eram convidados, e havia danças ao redor do prisioneiro, que era conduzido pela “praça” da aldeia. Amarrado pelo meio da corda, o prisioneiro era impedido de fugir por dois grupos de pessoas que o seguravam, cada um, por uma das pontas da corda. Um dos integrantes da tribo matava o prisioneiro com um golpe de bastão na nuca. Então, o corpo do inimigo era levado ao fogo e cortado. Uma sopa era feita com os intestinos e consumida pelas mulheres e crianças, que também comiam a carne da cabeça, os miolos e a língua. (Cf. STADEN, 2006, p. 87-88).

Rico em detalhes, o relato de Hans Staden nos permite vislumbrar os perigos aos quais podia-se estar submetido em solo americano. Em verdade, a aventura das grandes navegações dos séculos XV e XVI era repleta de riscos aos europeus que se lançavam à conquista ultramarina. 

Para finalizar, mencionemos um relato do início do século XVI cuja autoria ainda não foi determinada com precisão. Trata-se da conhecida narrativa do “Piloto Anônimo” acerca da expedição de Pedro Álvares Cabral. Ao contrário do que dissera Pero Vaz de Caminha, o texto do Piloto Anônimo afirma que houve vista de terra no dia 24 de abril (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 30). O texto apresenta a sua versão da história descrevendo os aspectos físicos dos índios – “gente parda, bem disposta, com cabelos compridos; andavam todos nus sem vergonha alguma, e cada um deles trazia seu arco com frechas” –, a barreira linguística nos primeiros contatos – “não havia ninguém na armada que entendesse a sua linguagem”, os índios “não se entendiam por falas, nem mesmo por acenos” – e o comportamento dos indígenas durante a realização de uma missa – eles “bailavam e tangiam nos seus instrumentos”. O texto ainda apresenta informações a respeito da fauna e da flora locais, tecendo elogios às riquezas naturais do lugar – os papagaios, o inhame, as árvores, a abundância de água, etc. (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 30-31).   

Em seguida, o texto do Piloto Anônimo apresenta mais uma informação interessante: “Nos dias que aqui estivemos, determinou Pedro Álvares Cabral fazer saber ao nosso Sereníssimo Rei o descobrimento desta terra, e deixar nela dois homens condenados à morte, que trazíamos na armada para este efeito; e assim despachou um navio que vinha em nossa conserva carregado de mantimentos, além dos doze sobreditos, o qual trouxe a el-rei as cartas em que se continha tudo quanto tínhamos visto e descoberto. Despachado o navio, saiu o capitão em terra, mandou fazer uma cruz de madeira muito grande e a plantou na praia, deixando, como já disse, os dois degredados neste mesmo lugar, os quais começaram a chorar, e foram animados pelos naturais do país, que mostravam ter piedade deles” (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 32).

O relato então descreve a partida da frota de Cabral daquela região e a posterior viagem em direção ao oriente, em uma narrativa que é marcada pelas descrições dos perigos aos quais aqueles homens estavam submetidos: “o mar embraveceu-se por maneira tal que parecia levantar-nos ao céu, até que o vento se mudou de repente, e posto que a tempestade ainda era tão forte que não nos atrevíamos a largar as velas, ainda assim, navegando sem elas, perdemo-nos uns dos outros, de modo que a capitaina com duas outras naus tomaram um rumo, outra chamada ‘El-Rei’ com mais duas tomaram outro, e as que restavam ainda outro, e assim passamos esta tempestade vinte dias consecutivos sempre em árvore seca, até que aos 16 do mês de junho houvemos vista da terra da Arábia, onde surgimos, e chegados à costa pudemos fazer uma boa pescaria” (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 33).

Naquele tempo, lançar-se ao mar sem o conhecimento e as tecnologias que temos hoje era uma aventura cheia de riscos, e muitos morreram durante as grandes navegações. Posto isso, é preciso dizer que os contatos entre os navegadores europeus e os povos que viviam no continente americano se deram a partir de uma conjuntura muito específica. Encontrando os mais diferentes povos em solo americano, portadores de costumes até então desconhecidos na Europa, os europeus que aqui chegaram lançaram muitas vezes um olhar etnocêntrico sobre as populações indígenas.

Ver o outro como inferior ajudava a justificar a conquista do território, a dominação, a cristianização e, não tardou a demorar, também o extermínio dos índios. O homem europeu, ao se considerar superior, sentia-se no direito de explorar o continente americano. No contato entre as diferentes culturas, os navegadores vindos da Europa não puderam deixar de estranhar e condenar certos hábitos indígenas. Por outro lado, a postura de um homem como Jean de Léry, como se viu, nos mostra que havia quem estivesse disposto a entender melhor o modo de vida das pessoas que habitavam a América antes da chegada dos europeus a partir do final do século XV.

O que se pode concluir a partir dos relatos de alguns cronistas das grandes navegações aqui brevemente analisados é que a relação com o “outro”, com aquele que nos é diferente, é quase sempre marcada por dificuldades e pelo estranhamento. Contudo, compreender melhor o outro e sua forma de ver o mundo é um exercício importante, ainda mais quando se vive em um mundo que ainda apresenta tantos preconceitos e formas de intolerância como é o nosso mundo de hoje.

Desse ponto de vista, estudar como foram os contatos entre os europeus e os indígenas, bem como refletir acerca da maneira pela qual os homens do Velho Mundo lidavam com as diferenças no século XVI, pode nos auxiliar a pensar nas formas como nós, hoje em dia, lidamos com as diferenças culturais.


Bibliografia

CAMINHA, Pero Vaz de. Carta do achamento do Brasil. In: OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. 3. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 19-25.

COLOMBO, Cristovão. Diários da descoberta da América: as quatro viagens e o testamento. Porto Alegre: L&PM, 1991.

LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. In: OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. 3. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 69-81.

OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. 3. ed. São Paulo: Ática, 2006.

STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. In: OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. 3. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 85-89.

THEVET, André. As singularidades da França Antártica. In: OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. 3. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 59-65.



quarta-feira, 18 de julho de 2018

A historiografia na era da informação: como a ciência dos dados está transformando a historiografia? (*)

(*) Texto escrito por Felipe Palt [1] e originalmente publicado no Estado da Arte, blog vinculado ao jornal O Estado de S. Paulo, no dia 12 de julho de 2018. Para ver o texto conforme publicado no site de origem, clique aqui.


 Figura de distâncias a partir de Roma durante o verão usando o site, citado no texto, ORBIS: The Stanford Geospatial Network Model of the Roman World.


No artigo “Regressão, classificação, e aprendizado por máquina” [2], falamos de algumas técnicas fundamentais para a interpretação de dados através da estatística. Hoje, com bilhões de dados obtidos por computadores entramos no mundo do “big data”, que exige técnicas semelhantes, porém mais poderosas. Mas, antes de discutir o chamado aprendizado por máquina, vamos lembrar que em muitas áreas de estudo a dificuldade é justamente na obtenção de dados para correlacionar, classificar, e interpretar. Vamos considerar 3 exemplos: a Grécia antiga, o Império Romano, e o Brasil colonial.

A historiografia tradicional sobre a Grécia antiga se baseia nas narrativas da época, especialmente atenienses, ou lança mão de classificações esquemáticas sobre modos de produção. Segundo ela, as massas de escravos e camponeses pobres sustentavam filósofos, oradores, e generais, cujas repetidas guerras terminam por destruir a liberdade das cidades-estado. Não é completamente falsa, mas a Grécia com seus governos descentralizados tinha sociedades urbanas e economia comercial, de um tipo que reaparece na Itália renascentista e na Holanda no século XVII. O livro The Rise and Fall of Classical Greece, do professor Josiah Ober, da Universidade Stanford, observa que foi uma sociedade próspera para os padrões pré-industriais, mesmo tendo regimes escravistas com participação popular limitada: a própria Grécia só alcança o pico clássico de população e renda no século XX. Uma análise difícil de fazer estudando apenas os textos, possibilitada pela agregação de informações e dados.

Os textos clássicos narram a guerra do Peloponeso e o fim da hegemonia ateniense, sugerindo a decadência de uma civilização que na verdade continua após o século de Péricles e se expande durante o período helenístico. O recente levantamento An Inventory of Archaic and Classical Poleis, de Mogens Hansen e Thomas Nielsen, da Universidade de Copenhagen, no qual o livro de Ober se baseia, agrupa informações sobre mais de mil cidades. A agregação da informação mostra que a peculiar mistura de competição e cooperação entre cada polis grega cria inovações técnicas, comerciais, militares, e de governança, conduzindo a uma prosperidade duradoura para os padrões da época, que não fica limitada às cidades melhor documentadas. O estudo da história antiga pode ser feito com relativa abundância de dados, acessíveis até para o historiador que não domina as línguas clássicas.

Já a história do Império Romano era contada como uma série de guerras de expansão, seguidas do declínio e queda. A população desempregada da cidade seria sustentada pela distribuição de trigo produzido nas províncias conquistadas pelas legiões imperiais. Mas o destacado economista Peter Temin, do MIT, sustenta em The Roman Market Economy que o mundo romano utilizava sofisticadas práticas econômicas que não podem ser rotuladas como um modo de produção arcaico. O livro usa as ferramentas da economia e estatística para mostrar que comércio e mercados foram cruciais para a prosperidade da Roma antiga. Sim, era um império escravagista. Mas seu padrão de renda foi semelhante ao da Europa antes da revolução industrial. A metodologia, com tratamento estatístico de preços, tanto de mercadorias como do trabalho, consegue superar as limitações da escassez de dados, mostrando que as trocas não se faziam em termos fixados pelo dirigismo imperial.

O argumento de Temin pode ser entendido considerando as técnicas de regressão do nosso artigo anterior. Simplificando bastante: os preços do trigo e outras mercadorias no Mediterrâneo estavam correlacionados entre si, variando conjuntamente em tempos de abundância e escassez, e entre si de acordo com o custo de transporte para o maior mercado consumidor, a própria Roma. A hipótese de que os preços eram fixos ou então determinados pelo dirigismo imperial é estatisticamente inverossímil, sobrando como explicação mais razoável a que descreve o império como uma economia de mercado.

O livro de Temin, talvez um pouco controverso entre historiadores, também faz comparações entre a escravidão antiga romana e a moderna nos Estados Unidos e no Brasil. Essa instituição, sempre opressiva, se apresenta com diferentes graus de coação e de violência nas diversas sociedades que a adotam. Mesmo escravizado o ser humano possui autonomia, e pode ser persuadido a trabalhar, seja por ameaças de castigos, seja pela recompensa da liberdade, que era comum em Roma, ocasional no Brasil urbano, e raríssima na América do Norte.

Outros aspectos quantitativos do comércio imperial podem ser visualizados no “ORBIS: The Stanford Geospatial Network Model of the Roman World” através do site http://orbis.stanford.edu. Lá aprendemos, por exemplo, que no auge do império uma viagem entre Alexandria e Roma no outono durava 2 semanas, ficando o custo do transporte de 1 kg de trigo em 2 denários (o denário era uma moeda de prata de aproximadamente 4g, mais ou menos o peso de meia pataca ou 160 réis do nosso período imperial). Para comparação, um artesão em Roma recebia 12 sestércios, no total equivalentes a 3 denários, por dia de trabalho. No Mediterrâneo o comércio era mais rápido do que o correio e a alfândega brasileira nos permitem hoje! Já o comércio pesado atlântico ou transalpino era proibitivo – e no inverno uma legião romana poderia demorar mais de um mês para chegar em Londinium ou na Colônia Agripina, nos limites do Império, o que ajuda a entender o contexto das invasões bárbaras.

E no Brasil? Qual a realidade que se oculta ao som do mar e à luz do céu profundo?

Os portugueses apenas se interessaram pelas regiões costeiras. Somente com a descoberta do ouro os olhares inquisitivos da Coroa se voltam ao interior, e mesmo assim não enxergam muito mais do que os minerais preciosos. Informações escritas sobre o Brasil colonial estão espalhadas nos documentos das câmaras de vereadores das vilas do interior, que mantiveram eleições e sistemas de governo com uma boa dose de legitimidade durante todo o período. Especificamente sobre São Paulo, confira A Capital da Solidão, do jornalista Roberto Pompeu de Toledo. Até recentemente, essas informações não eram de fácil consulta. Por causa da proibição da imprensa e da escassez de documentação escrita durante o período colonial, por muito tempo consideramos que o interior do Brasil tinha uma “economia de subsistência” primitiva, que sustentava os poucos habitantes no nível da fome.

Conforme lemos na História da Riqueza no Brasil de Jorge Caldeira, entrevistado aqui no Estado da Arte em 6 de abril [3], a agregação de dados obtidos em pesquisas multidisciplinares mostra que não é bem assim. Já a partir dos primórdios da época colonial o Brasil formava uma unidade, construída a partir de uma aliança entre leis portuguesas e práticas indígenas, especialmente dos povos tupis, e também com a forte influência africana. A economia brasileira, que não se resume ao comércio colonial, supera a da metrópole, e talvez até se compare à economia dos Estados Unidos na época de sua independência – com as ressalvas de que a colônia portuguesa já era uma nação de dimensões continentais, e que sua acumulação de capital humano e intelectual era restrita pelas deficiências de educação e pela censura à imprensa.

Os historiadores hoje conseguem combinar informações de vários tipos e tratar a largura que a terra do Brasil tem para o sertão, sem contentar-se em andar arranhando ao longo do mar como caranguejos. Ainda há muitas questões a perguntar e a responder sobre nossa história, usando a estatística clássica e as ferramentas não-lineares, às quais voltaremos mais tarde. Talvez seja apropriado concluir com a frase de Colin McEvedy na introdução de uma das primeiras edições de The Penguin Atlas of Ancient History: “A história sendo um ramo das ciências biológicas, sua expressão última será matemática”.

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[1] Felipe Palt é professor no Laboratório de Automação & Controle da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Estudou engenharia elétrica na USP e na Universidade Yale.