Alguns
dos europeus que se aventuravam pelos mares durante as Grandes Navegações dos
séculos XV e XVI costumavam registrar os fatos que aconteciam durante as
viagens em diários e cartas. Esses materiais são documentos importantes para o
estudo daquelas navegações, pois nos revelam, entre outras coisas, a visão de
mundo daqueles homens, bem como nos oferecem informações sobre as terras e as
populações que foram encontradas na América.
O
próprio Cristovão Colombo registrou em seus diários a sua versão da viagem
financiada por Fernando e Isabel – os “reis católicos” da Espanha – que o
trouxe ao continente americano. O relato de Colombo é rico em descrições da
viagem e da própria chegada à América – embora o navegador genovês pensasse ter
chegado ao oriente –, apresentando ainda detalhes da fauna e da flora locais.
Colombo escreveu também sobre as populações indígenas que encontrou e como
foram os primeiros contatos com aquelas pessoas. Chamaram-lhe a atenção o fato
de aqueles homens e mulheres andarem nus, terem os corpos “bonitos”, serem
“amigáveis” e serem dispostos a trocar objetos com os europeus. Ainda segundo a
descrição feita por Colombo, os índios pareciam ser de fácil conversão à fé
católica e aparentavam ser “bons serviçais”. Ademais, o genovês se admirou com
o fato de não existirem nem índios de pele negra nem índios de pele branca,
visto que eles eram da “cor dos canários”. Em seus diários, é visível o
interesse do navegador por metais preciosos, em especial pelo ouro. Colombo
registrou ainda que mandou capturar alguns índios para que fossem enviados à
Espanha e aprendessem a língua dos colonizadores. O navegador também afirmou em
algumas passagens que seria aparentemente fácil subjugar aqueles povos,
demonstrando ter a ideia de tomar e garantir a posse daquele território
(COLOMBO, 1991).
O
texto escrito por Cristovão Colombo não apenas descreve os detalhes da aventura
por ele vivida, mas é também um documento que nos permite vislumbrar os
interesses envolvidos na empresa das navegações, a saber, a busca por riquezas
e o desejo de levar a fé católica a outros lugares do mundo. Assim, ao destacar
a facilidade com a qual seria possível dominar os povos encontrados, o que
Colombo pretendia era encorajar mais viagens, e, consequentemente, a própria
empresa colonizadora.
Por
sua vez, a expedição que trouxe Pedro Álvares Cabral ao litoral do território
que daria origem ao Brasil contou com a presença de Pero Vaz de Caminha
(Porto?, 1450 – Calecute, 1500), o escrivão da armada que registrou os detalhes
desta viagem em uma carta. Segundo Antonio Carlos Olivieri e Marco Antonio
Villa, a “Carta do achamento” do Brasil escrita por Caminha foi redigida “entre
os dias 26 de abril e 1° de maio de 1500” e tinha como objetivo “informar ao
rei de Portugal, dom Manuel I, o descobrimento e apresentar-lhe o que aí se
encontrou”. Ainda de acordo com os pesquisadores, a carta tem um “estilo claro”
e a “objetividade que convém a um relatório”. Por sua vez, os fatos são
apresentados em “ordem cronológica”, e revelam o que aconteceu entre os dias
09/03/1500, data do começo da viagem, e 02/05/1500, quando a expedição deixou o
Brasil (OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 17).
É
curioso perceber que Caminha se diz, de maneira humilde no início da carta, um
ignorante, e que não registrará nada mais do que aquilo que viu e que lhe
pareceu (CAMINHA, 2006, p. 19), tentando assim se mostrar o mais objetivo
possível em seu relato. A terra foi avistada no dia 21 de abril por meio de um
“grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e
de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o monte
Pascoal e à terra – a Terra de Vera Cruz” (CAMINHA, 2006, p. 20).
Já
sobre os primeiros contatos com os índios, Caminha escreveu: “Eram pardos,
todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam
arcos com suas setas. Vinham todos rijamente sobre o batel; e Nicolau Coelho
lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles pousaram” (CAMINHA, 2006, p. 20).
O escrivão registrou ainda a barreira linguística que dificultava a comunicação
com aquelas pessoas – não foi possível “deles haver fala” –, mas destaca também
que o primeiro contato foi pacífico e que houve entendimento entre os dois
grupos por meio da relação de troca de objetos (Cf. CAMINHA, 2006, p. 20-21).
Em
seguida, Caminha relatou um momento de confraternização entre índios e
europeus: “Diogo Dias [...] levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E
meteu-se com eles [os índios] a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e
riam, e andavam com ele muito bem ao som da sua gaita” (CAMINHA, 2006, p. 21).
Todavia, em outra passagem, o escrivão afirmou que os indígenas nem sempre
ficavam tão próximos dos brancos: “Bastará dizer-vos que até aqui, como quer
que eles um pouco se amansassem, logo duma mão para a outra se esquivavam [...]
e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar” (CAMINHA, 2006, p. 22).
Assim, os índios foram vistos por Caminha como seres que deviam ser tratados
com um certo cuidado, afinal, era preciso garantir que eles ficassem “mansos”
em relação à presença dos europeus.
A
impressão que os índios causaram em Caminha foi boa: “os corpos seus são tão
limpos, tão gordos e formosos, que não pode mais ser”, “Ali vieram então
muitos, mas não tantos como as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos.
Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco misturaram-se
conosco. Abraçavam-nos e folgavam” (CAMINHA, 2006, p. 22).
Em
outra passagem do texto, Caminha falou da tentativa de cristianização dos
índios: “E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos
levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até
ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a
Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como estávamos
com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa
Alteza, nos fez muita devoção” (CAMINHA, 2006, p. 23).
O
escrivão fez questão de complementar ainda: “E, segundo o que a mim e a todos
pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão
entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos,
por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem
creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que
todos serão tomados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não
deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais
conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os
quais hoje também comungaram ambos. Entre todos estes que hoje vieram, não veio
mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano
com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia
grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência
desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha. Ora veja
Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes
o que pertence à sua salvação”. (CAMINHA, 2006, p. 24-25).
Assim,
de maneira parecida ao que fizera Colombo, Pero Vaz de Caminha salientou em seu
relato a possibilidade de converter os índios à fé católica, utilizando para
isso descrições do comportamento aparentemente dócil daquelas pessoas. Cabe
ainda dizer que em outras passagens da carta, Caminha se mostra encantado com
os recursos naturais do lugar e demonstra uma constante preocupação em
encontrar metais preciosos.
O
frade franciscano francês André Thevet (Angoulême, 1502 – Paris, 1590) viajou
com Villegaignon para o Brasil em 1555 com o intuito de estabelecer aqui uma
colônia francesa batizada de França Antártica. Permaneceu em solo americano de
novembro de 1555 a janeiro de 1556. Thevet assim descreveu os índios do lugar:
“esta terra foi e é ainda hoje habitada por gente prodigiosamente estranha e
selvagem, sem fé, sem lei, sem religião, sem civilidade nenhuma, que vive como
os animais irracionais, do modo como a natureza a fez, comendo raízes, andando
sempre nua (tanto homens quanto mulheres), e isso talvez até que, convivendo
com os cristãos, aos poucos se despoje dessa brutalidade, passando a vestir-se
de modo mais civilizado e humano. No que devemos efetivamente louvar o Criador,
que nos esclareceu, não permitindo que fôssemos assim brutais, como estes
pobres americanos” (THEVET, 2006, p. 60).
Como
se vê, Thevet descreveu os índios julgando-os a partir dos padrões europeus de
comportamento. Desse modo, as pessoas do continente americano foram vistas como
inferiores em relação ao homem civilizado vindo da Europa, portador este da
razão, da verdadeira fé e dos bons modos. O olhar de Thevet, portanto, é
marcado por uma perspectiva etnocêntrica.
Thevet
registrou ainda uma crença da população indígena: “os nossos selvagens fazem
menção a um grande Senhor, que na língua deles se chama Tupã e que, morando no
céu, faz chover e trovejar. Mas não têm eles maneira nem hora de orar a esse
deus ou de cultuá-lo, assim como tampouco há lugar próprio para isso” (THEVET,
2006, p. 61). Mais uma vez, o etnocentrismo se manifesta, pois Thevet avalia a
crença indígena a partir dos modelos europeus de religiosidade, com seus
templos e rituais.
Thevet
detalhou ainda as relações entre indígenas e europeus: “Assim que esta terra
foi descoberta, [...] esses selvagens, espantados ao verem as feições e os
modos dos cristãos (que nunca antes haviam visto), tomaram-nos por profetas e
os homenagearam como se fossem deuses. E essa canalha assim fez até que,
percebendo estarem eles sujeitos a doenças, morte e paixões semelhantes às
suas, começou a desprezá-los e a tratá-los pior que de costume, como ocorreu
com todos os que depois chegaram, espanhóis e portugueses. De modo que, se
esses selvagens ficarem irritados, não custarão a matar um cristão e a comê-lo,
como fazem com seus inimigos. Mas isso ocorre em alguns lugares, especialmente
entre os canibais, que não vivem de outra coisa, como fazemos aqui com bois e
carneiros” (THEVET, 2006, p. 61).
Temos
aqui, em verdade, uma diferença importante em relação aos relatos anteriormente
citados e analisados. Thevet aponta para a ocorrência de conflitos entre
indígenas e europeus, destacando com sua perspectiva etnocêntrica a crueldade
da antropofagia praticada pelos indígenas. Contudo, é preciso esclarecer que o
hábito de comer carne humana, uma prática de algumas populações indígenas que
habitavam o território que viria a ser o Brasil, não era simplesmente uma opção
alimentar, como parece pensar Thevet, mas sim um ritual místico-religioso.
Outro
francês, Jean de Léry (La Margelle, 1534 – Berna, 1611), um homem de família
burguesa e calvinista que, quando jovem, começou a estudar teologia, também
viajou para o Brasil em 1556 para se estabelecer na colônia francesa fundada
por Villegaignon. Retornou para a Europa em 1558, fixando-se em Genebra, onde
concluiu os estudos em teologia e tornou-se ministro protestante. A sua
narrativa sobre o período que passou no Brasil, quando conviveu com os índios,
foi escrita dezoito anos depois do período que passou nestas terras e foi
publicada em 1578, fazendo sucesso junto ao público leitor europeu e sendo
traduzida para o holandês, o alemão e o latim (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p.
67-68).
Ao
descrever os índios, Léry destacou como se fazia a justiça entre aquelas
populações onde, segundo o seu relato, tudo era baseado no princípio de “vida
por vida, olho por olho, dente por dente”. Contudo, mesmo narrando algumas brigas
e alguns conflitos que ocorriam entre os índios, o francês salientou que, na
maior parte do tempo, os índios se davam bem entre si e viviam em paz uns com
os outros (Cf. LÉRY, 2006, p. 69). Em seu relato, Léry aponta para o fato de os
índios não se fixarem em um único local, mas viverem mudando de região. É comum
no texto do francês a opinião de que certos costumes indígenas são melhores que
os dos europeus, como é o caso do hábito de dormir em redes: “pergunto a quem
as experimentou se de fato não é melhor nelas [nas redes] dormir,
principalmente no verão, do que em nossas camas comuns” (LÉRY, 2006, p. 71).
Sobre
as mulheres indígenas, Léry descreveu os trabalhos domésticos feitos por elas.
Já sobre a forma como índios recebem as pessoas, o francês escreveu: “nossos
tupinambás recebem com grande humanidade os estrangeiros amigos que os vão
visitar, ainda que os franceses e outros daqui que não entendam a língua deles
se sintam no começo admirados e assombrados” (LÉRY, 2006, p. 72). Sobre a sua
primeira visita a uma aldeia, Léry registrou: “senti-me aturdido com aquela
gritaria e correria pela aldeia com meus equipamentos [um pouco antes, Léry
contara que os índios haviam pegado seu chapéu, sua espada, seu cinto, e seu
casaco], o que não só me fazia pensar que tinha perdido tudo como também me
deixava sem saber onde estava” (LÉRY, 2006, p. 73). Contudo, Léry esclarece em
seguida que fazia parte dos modos indígenas brincar com as coisas alheias por
um tempo, mas que depois devolviam tudo ao dono (Cf. LÉRY, 2006, p. 73).
No
que diz respeito à antropofagia, temos que a presença deste hábito entre os
índios amedrontou Léry: “E estava eu tão cansado, querendo apenas repousar,
que, depois de comer um pouco de farinha de raízes e de outros alimentos que
nos haviam oferecido, estendi-me e fiquei deitado na rede na qual me havia
sentado. Mas não dormi, porque, além do barulho que os selvagens fizeram a
noite toda em meus ouvidos com aquelas danças e assobios, a comerem o
prisioneiro, um deles, trazendo na mão um dos pés deste, cozido e tostado,
aproximou-se de mim e perguntou-me (como soube depois, porque então não
entendi) se queria um pedaço; comportamento este que provocou em mim tanto
pavor que nem cabe perguntar se perdi toda a vontade de dormir. Pois como eu acreditasse
que aqueles sinais e aquela exibição da carne humana, que ele devorava, eram
uma ameaça, e que ele estivesse dizendo e dando a entender que em breve eu
estaria com aquele aspecto, e como uma dúvida puxa outra, logo desconfiei que o
intérprete, traindo-me deliberadamente, me havia abandonado, deixando-me nas
mãos daqueles bárbaros. E se eu tivesse visto alguma abertura para sair e fugir
dali, não teria hesitado. Mas vendo-me cercado de todos os lados por aquela
gente cujas intenções ignorava (pois, como se saberá, eles não pensavam de modo
algum em fazer-me mal), acreditava eu firmemente e previa mesmo que seria
devorado, o que me fez invocar Deus em meu coração durante toda aquela noite”
(LÉRY, 2006, p. 74).
Apesar
do temor descrito neste episódio, Léry assume uma postura interessante, ao
tentar valorizar certos aspectos da cultura indígena. Ao falar de como os
índios recebiam os seus visitantes, salientando que aqueles povos ofereciam
comida, bebida e lugar onde dormir a quem chegasse amigavelmente às suas
aldeias, Léry é capaz de afirmar o seguinte: “tendo eu vivido com eles,
confiaria mais neles e de fato estava mais seguro em meio àquele povo que
chamamos selvagem do que me sinto hoje em alguns lugares de nossa França, com
franceses desleais e degenerados: falo daqueles que assim são, pois quanto à
gente de bem, de que graças a Deus o reino ainda não está desprovido, muito me
entristeceria denegrir sua honra” (LÉRY, 2006, p. 79).
Como
o nosso leitor pode observar, Léry procurou compreender o comportamento dos
índios registrando certo estranhamento por um lado, mas em contrapartida também
chamando a atenção para aspectos positivos daquelas populações, revelando que
seus preconceitos em relação a aquelas pessoas caíam por terra quando os conhecia
melhor. Assim, a postura de Léry é emblemática quando se pensa nas formas como
os homens lidam com as diferenças culturais ao longo do tempo. Pode-se dizer
que Léry revelou possuir um certo senso de relatividade dos costumes – o que é
estranho para um grupo, pode não ser para outro – e também uma simpatia para
com os indígenas, o que lhe permitiu melhor compreendê-los.
Outro
relato interessante que foi produzido no contexto das grandes navegações é o de
Hans Staden, homem de quem poucos dados biográficos existem. Sabe-se que viveu
no século XVI, tendo nascido em Hessen, na Alemanha. Staden viajou duas vezes
ao Brasil, na primeira foi à região de Pernambuco em 1547, de onde retornou a
Portugal no ano seguinte, e, na segunda, em 1550, estabeleceu-se na região de
São Vicente. Entre meados de janeiro e 31 de novembro de 1553, Staden foi
prisioneiro dos tupinambás, em um período no qual era frequentemente ameaçado
de morte e de ser devorado em um ritual da tribo. O seu relato sobre suas
aventuras foi publicado pela primeira vez em 1557, em Hessen, e foi
posteriormente traduzido para o flamengo, o holandês, o latim e o francês (Cf.
OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 83).
Sobre
o seu aprisionamento, Staden escreveu: “Quando entrei [em uma casa dos índios],
correram as mulheres ao meu encontro e me deram bofetadas, arrancando a minha
barba e falando em sua língua: ‘Che anama pipike aé’, o que quer dizer: ‘Vingo
em ti o golpe que matou o meu amigo, o qual foi morto por aqueles entre os
quais tu estiveste’. Conduziram-me, depois, para dentro de casa, onde fui
obrigado a me deitar em uma rede. Voltaram as mulheres e continuaram a me bater
e maltratar, ameaçando de me devorar” (STADEN, 2006, p. 85).
Vale
destacar que durante o período em que passou com os índios, Hans Staden
aprendeu muito sobre a vida da tribo. No que diz respeito ao casamento, por
exemplo, Staden registrou em seu relato que a maioria dos índios do sexo
masculino tinha apenas uma mulher, mas os mais importantes do grupo tinham mais
de uma, podendo chegar a 13 ou 14 esposas, que em geral se davam bem entre si
(Cf. STADEN, 2006, p. 86).
Na
narrativa de Hans Staden o que chama a atenção é a descrição dos modos como os
indígenas tratavam os seus inimigos. Depois de aprisionado, o inimigo era
trazido para a casa de algum indígena, onde recebia bofetadas de mulheres e
crianças, era enfeitado com penas pardas, tinha as sobrancelhas cortadas e era
amarrado para que não fugisse. Uma mulher o guardava e tinha relações com ele.
Se ela concebesse um filho, a criança seria educada até ficar grande, e, quando
fosse a vontade da tribo, ela seria morta e devorada. Quanto ao prisioneiro,
era tratado por algum tempo com boa comida, porém, quando chegasse o dia do
sacrifício, ele era amarrado com uma corda comprida. Selvagens de outras tribos
eram convidados, e havia danças ao redor do prisioneiro, que era conduzido pela
“praça” da aldeia. Amarrado pelo meio da corda, o prisioneiro era impedido de
fugir por dois grupos de pessoas que o seguravam, cada um, por uma das pontas da
corda. Um dos integrantes da tribo matava o prisioneiro com um golpe de bastão
na nuca. Então, o corpo do inimigo era levado ao fogo e cortado. Uma sopa era
feita com os intestinos e consumida pelas mulheres e crianças, que também
comiam a carne da cabeça, os miolos e a língua. (Cf. STADEN, 2006, p. 87-88).
Rico
em detalhes, o relato de Hans Staden nos permite vislumbrar os perigos aos
quais podia-se estar submetido em solo americano. Em verdade, a aventura das
grandes navegações dos séculos XV e XVI era repleta de riscos aos europeus que
se lançavam à conquista ultramarina.
Para
finalizar, mencionemos um relato do início do século XVI cuja autoria ainda não
foi determinada com precisão. Trata-se da conhecida narrativa do “Piloto
Anônimo” acerca da expedição de Pedro Álvares Cabral. Ao contrário do que
dissera Pero Vaz de Caminha, o texto do Piloto Anônimo afirma que houve vista
de terra no dia 24 de abril (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 30). O texto
apresenta a sua versão da história descrevendo os aspectos físicos dos índios –
“gente parda, bem disposta, com cabelos compridos; andavam todos nus sem
vergonha alguma, e cada um deles trazia seu arco com frechas” –, a barreira
linguística nos primeiros contatos – “não havia ninguém na armada que entendesse
a sua linguagem”, os índios “não se entendiam por falas, nem mesmo por acenos”
– e o comportamento dos indígenas durante a realização de uma missa – eles
“bailavam e tangiam nos seus instrumentos”. O texto ainda apresenta informações
a respeito da fauna e da flora locais, tecendo elogios às riquezas naturais do
lugar – os papagaios, o inhame, as árvores, a abundância de água, etc. (Cf.
OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 30-31).
Em
seguida, o texto do Piloto Anônimo apresenta mais uma informação interessante:
“Nos dias que aqui estivemos, determinou Pedro Álvares Cabral fazer saber ao
nosso Sereníssimo Rei o descobrimento desta terra, e deixar nela dois homens
condenados à morte, que trazíamos na armada para este efeito; e assim despachou
um navio que vinha em nossa conserva carregado de mantimentos, além dos doze
sobreditos, o qual trouxe a el-rei as cartas em que se continha tudo quanto
tínhamos visto e descoberto. Despachado o navio, saiu o capitão em terra,
mandou fazer uma cruz de madeira muito grande e a plantou na praia, deixando,
como já disse, os dois degredados neste mesmo lugar, os quais começaram a
chorar, e foram animados pelos naturais do país, que mostravam ter piedade
deles” (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 32).
O
relato então descreve a partida da frota de Cabral daquela região e a posterior
viagem em direção ao oriente, em uma narrativa que é marcada pelas descrições
dos perigos aos quais aqueles homens estavam submetidos: “o mar embraveceu-se
por maneira tal que parecia levantar-nos ao céu, até que o vento se mudou de
repente, e posto que a tempestade ainda era tão forte que não nos atrevíamos a
largar as velas, ainda assim, navegando sem elas, perdemo-nos uns dos outros,
de modo que a capitaina com duas outras naus tomaram um rumo, outra chamada
‘El-Rei’ com mais duas tomaram outro, e as que restavam ainda outro, e assim
passamos esta tempestade vinte dias consecutivos sempre em árvore seca, até que
aos 16 do mês de junho houvemos vista da terra da Arábia, onde surgimos, e
chegados à costa pudemos fazer uma boa pescaria” (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p.
33).
Naquele
tempo, lançar-se ao mar sem o conhecimento e as tecnologias que temos hoje era
uma aventura cheia de riscos, e muitos morreram durante as grandes navegações.
Posto isso, é preciso dizer que os contatos entre os navegadores europeus e os
povos que viviam no continente americano se deram a partir de uma conjuntura
muito específica. Encontrando os mais diferentes povos em solo americano,
portadores de costumes até então desconhecidos na Europa, os europeus que aqui
chegaram lançaram muitas vezes um olhar etnocêntrico sobre as populações
indígenas.
Ver
o outro como inferior ajudava a justificar a conquista do território, a
dominação, a cristianização e, não tardou a demorar, também o extermínio dos
índios. O homem europeu, ao se considerar superior, sentia-se no direito de
explorar o continente americano. No contato entre as diferentes culturas, os
navegadores vindos da Europa não puderam deixar de estranhar e condenar certos
hábitos indígenas. Por outro lado, a postura de um homem como Jean de Léry,
como se viu, nos mostra que havia quem estivesse disposto a entender melhor o
modo de vida das pessoas que habitavam a América antes da chegada dos europeus
a partir do final do século XV.
O
que se pode concluir a partir dos relatos de alguns cronistas das grandes
navegações aqui brevemente analisados é que a relação com o “outro”, com aquele
que nos é diferente, é quase sempre marcada por dificuldades e pelo
estranhamento. Contudo, compreender melhor o outro e sua forma de ver o mundo é
um exercício importante, ainda mais quando se vive em um mundo que ainda
apresenta tantos preconceitos e formas de intolerância como é o nosso mundo de
hoje.
Desse
ponto de vista, estudar como foram os contatos entre os europeus e os
indígenas, bem como refletir acerca da maneira pela qual os homens do Velho
Mundo lidavam com as diferenças no século XVI, pode nos auxiliar a pensar nas
formas como nós, hoje em dia, lidamos com as diferenças culturais.
Bibliografia
CAMINHA,
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