(*)
Texto escrito por Felipe Palt [1] e originalmente publicado no Estado
da Arte, blog vinculado ao jornal O Estado de S. Paulo, no dia 12 de
julho de 2018. Para ver o texto conforme publicado no site de origem, clique aqui.
Figura de distâncias a partir de Roma durante o verão usando o site, citado no texto, ORBIS: The Stanford Geospatial Network Model of the Roman World.
No
artigo “Regressão, classificação, e aprendizado por máquina” [2],
falamos de algumas técnicas fundamentais para a interpretação de
dados através da estatística. Hoje, com bilhões de dados obtidos por
computadores entramos no mundo do “big data”, que exige
técnicas semelhantes, porém mais poderosas. Mas, antes de discutir o
chamado aprendizado por máquina, vamos lembrar que em muitas áreas
de estudo a dificuldade é justamente na obtenção de dados para
correlacionar, classificar, e interpretar. Vamos considerar 3 exemplos:
a Grécia antiga, o Império Romano, e o Brasil colonial.
A
historiografia tradicional sobre a Grécia antiga se baseia nas narrativas da
época, especialmente atenienses, ou lança mão de classificações
esquemáticas sobre modos de produção. Segundo ela, as massas de escravos e
camponeses pobres sustentavam filósofos, oradores, e generais, cujas
repetidas guerras terminam por destruir a liberdade das cidades-estado. Não é
completamente falsa, mas a Grécia com seus governos descentralizados tinha
sociedades urbanas e economia comercial, de um tipo que reaparece na
Itália renascentista e na Holanda no século XVII. O livro The Rise and Fall of Classical Greece,
do professor Josiah Ober, da Universidade Stanford, observa que foi uma
sociedade próspera para os padrões pré-industriais, mesmo tendo regimes
escravistas com participação popular limitada: a própria Grécia só alcança
o pico clássico de população e renda no século XX. Uma análise difícil de
fazer estudando apenas os textos, possibilitada pela agregação de
informações e dados.
Os
textos clássicos narram a guerra do Peloponeso e o fim da hegemonia ateniense,
sugerindo a decadência de uma civilização que na verdade continua após o
século de Péricles e se expande durante o período helenístico. O recente
levantamento An Inventory of Archaic and Classical Poleis, de Mogens
Hansen e Thomas Nielsen, da Universidade de Copenhagen, no qual o livro de Ober
se baseia, agrupa informações sobre mais de mil cidades. A agregação da
informação mostra que a peculiar mistura de competição e cooperação entre
cada polis grega cria inovações técnicas, comerciais, militares, e de
governança, conduzindo a uma prosperidade duradoura para os padrões da
época, que não fica limitada às cidades melhor documentadas. O estudo da
história antiga pode ser feito com relativa abundância de dados,
acessíveis até para o historiador que não domina as línguas clássicas.
Já
a história do Império Romano era contada como uma série de guerras de expansão,
seguidas do declínio e queda. A população desempregada da cidade seria
sustentada pela distribuição de trigo produzido nas províncias conquistadas
pelas legiões imperiais. Mas o destacado economista Peter Temin, do MIT,
sustenta em The Roman Market
Economy que o mundo romano utilizava sofisticadas
práticas econômicas que não podem ser rotuladas como um modo de produção
arcaico. O livro usa as ferramentas da economia e estatística para mostrar
que comércio e mercados foram cruciais para a prosperidade da Roma antiga. Sim,
era um império escravagista. Mas seu padrão de renda foi semelhante ao da
Europa antes da revolução industrial. A metodologia, com tratamento estatístico
de preços, tanto de mercadorias como do trabalho, consegue superar as
limitações da escassez de dados, mostrando que as trocas não se faziam em
termos fixados pelo dirigismo imperial.
O
argumento de Temin pode ser entendido considerando as técnicas de regressão do
nosso artigo anterior. Simplificando bastante: os preços do trigo e outras
mercadorias no Mediterrâneo estavam correlacionados entre si, variando
conjuntamente em tempos de abundância e escassez, e entre si de acordo com
o custo de transporte para o maior mercado consumidor, a própria Roma. A
hipótese de que os preços eram fixos ou então determinados pelo dirigismo
imperial é estatisticamente inverossímil, sobrando como explicação
mais razoável a que descreve o império como uma economia de mercado.
O
livro de Temin, talvez um pouco controverso entre historiadores, também faz
comparações entre a escravidão antiga romana e a moderna nos Estados
Unidos e no Brasil. Essa instituição, sempre opressiva, se apresenta com
diferentes graus de coação e de violência nas diversas sociedades que a
adotam. Mesmo escravizado o ser humano possui autonomia, e pode ser persuadido
a trabalhar, seja por ameaças de castigos, seja pela recompensa da
liberdade, que era comum em Roma, ocasional no Brasil urbano, e raríssima
na América do Norte.
Outros
aspectos quantitativos do comércio imperial podem ser visualizados no “ORBIS:
The Stanford Geospatial Network Model of the Roman World” através do
site http://orbis.stanford.edu. Lá aprendemos, por exemplo, que no auge do
império uma viagem entre Alexandria e Roma no outono durava 2 semanas,
ficando o custo do transporte de 1 kg de trigo em 2 denários (o denário era uma
moeda de prata de aproximadamente 4g, mais ou menos o peso de meia pataca
ou 160 réis do nosso período imperial). Para comparação, um artesão em
Roma recebia 12 sestércios, no total equivalentes a 3 denários, por dia de
trabalho. No Mediterrâneo o comércio era mais rápido do que o correio e a
alfândega brasileira nos permitem hoje! Já o comércio pesado atlântico ou
transalpino era proibitivo – e no inverno uma legião romana poderia
demorar mais de um mês para chegar em Londinium ou na Colônia Agripina, nos
limites do Império, o que ajuda a entender o contexto das invasões
bárbaras.
E
no Brasil? Qual a realidade que se oculta ao som do mar e à luz do céu
profundo?
Os
portugueses apenas se interessaram pelas regiões costeiras. Somente com a
descoberta do ouro os olhares inquisitivos da Coroa se voltam ao interior,
e mesmo assim não enxergam muito mais do que os minerais preciosos. Informações
escritas sobre o Brasil colonial estão espalhadas nos documentos das
câmaras de vereadores das vilas do interior, que mantiveram eleições e sistemas
de governo com uma boa dose de legitimidade durante todo o período.
Especificamente sobre São Paulo, confira A Capital da Solidão, do jornalista Roberto Pompeu de
Toledo. Até recentemente, essas informações não eram de fácil consulta. Por
causa da proibição da imprensa e da escassez de documentação escrita
durante o período colonial, por muito tempo consideramos que o interior do
Brasil tinha uma “economia de subsistência” primitiva, que sustentava os
poucos habitantes no nível da fome.
Conforme
lemos na História da Riqueza no
Brasil de Jorge Caldeira, entrevistado aqui no Estado
da Arte em 6 de abril [3], a agregação de dados obtidos em
pesquisas multidisciplinares mostra que não é bem assim. Já a partir dos
primórdios da época colonial o Brasil formava uma unidade, construída a
partir de uma aliança entre leis portuguesas e práticas indígenas, especialmente
dos povos tupis, e também com a forte influência africana. A economia
brasileira, que não se resume ao comércio colonial, supera a da metrópole,
e talvez até se compare à economia dos Estados Unidos na época de sua
independência – com as ressalvas de que a colônia portuguesa já era uma
nação de dimensões continentais, e que sua acumulação de capital humano e
intelectual era restrita pelas deficiências de educação e pela censura à
imprensa.
Os
historiadores hoje conseguem combinar informações de vários tipos e tratar a
largura que a terra do Brasil tem para o sertão, sem contentar-se em andar
arranhando ao longo do mar como caranguejos. Ainda há muitas questões a
perguntar e a responder sobre nossa história, usando a estatística
clássica e as ferramentas não-lineares, às quais voltaremos mais tarde. Talvez
seja apropriado concluir com a frase de Colin McEvedy na introdução de uma
das primeiras edições de The Penguin
Atlas of Ancient History: “A história sendo um ramo das ciências
biológicas, sua expressão última será matemática”.
____________
[1]
Felipe Palt é professor no Laboratório
de Automação & Controle da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
Estudou engenharia elétrica na USP e na Universidade Yale.
[2] Disponível em: <https://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/regressao-classificacao-e-aprendizado-por-maquina/>.
Acesso em: 18 jul. 2018.
[3]
Disponível em: <https://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/estado-da-arte-entrevista-jorge-caldeira/>.
Acesso em: 18 jul. 2018.