segunda-feira, 8 de abril de 2019

Fantasmas do passado (*)

(*) Texto escrito por Amila Kasumovic e originalmente publicado no site da Revista de História da Biblioteca Nacional no dia 01 jul. 2014. 


Dois tiros, e a Europa colocou-se em marcha irreversível rumo a um conflito generalizado, que se tornou a Primeira Guerra Mundial. Dois tiros disparados na cidade de Sarajevo, atual capital da Bósnia e Herzegovina. O assassinato do herdeiro do trono austro-húngaro, o arquiduque Francisco Ferdinando, em 28 de junho de 1914, deixou marcada uma região que já havia sido palco de milenares disputas territoriais, que depois seria socialista durante boa parte do século XX, e novamente assolada por uma guerra nos anos 1990.

Os fantasmas do passado continuam a assombrar Sarajevo. Tanto tempo depois, e mesmo com a abundância de textos produzidos sobre o tema, muitas questões permanecem em aberto. Como entender o movimento Jovem Bósnia, responsabilizado pelo crime? Qual o papel da Sérvia no atentado? Qual é a percepção atual sobre o jovem assassino Gavrilo Princip?

Em diversos textos, a autoria do atentado é atribuída à organização Jovem Bósnia. O termo “organização”, no entanto, parece inadequado, uma vez que ela não era formalmente reconhecida pelo governo, não possuía um estatuto ou um programa de atividades, nem mesmo um registro de seus membros. Cvetko Popovic, um dos participantes do assassinato, provavelmente nos fornece a melhor definição do movimento: “um molde vazio no qual qualquer escritor poderia alocar conteúdos arbitrários”. Reunia forças jovens na Bósnia e Herzegovina movidas por diferentes convicções políticas e ideológicas, variando do anarquismo e do socialismo ao nacionalismo sérvio e o “iugoslavismo” – o ideal de união dos povos “eslavos do sul”, incluindo os bósnios, para criar a Iugoslávia. Nessa vaga ideia de unificação, a Sérvia teria um papel significativo, equivalente ao que teve o Piemonte na formação do Estado italiano no século XIX. O que aqueles jovens tinham em comum era o ódio direcionado ao Império Austro-Húngaro e o desejo de se libertarem do controle estrangeiro. 

“A juventude progressista nacional iugoslava”, como é comumente chamada pela historiografia, considerava que o desenvolvimento de planos terroristas contra o Império dos Habsburgo era legítimo e justificado. No início do século XX, tiros assassinos soavam por toda a província balcânica. Na Bósnia e Herzegovina, Bogdan Žerajic tentou assassinar o governador provincial Marijan Varešanin no verão de 1910. Na Croácia, o ban (espécie de vice-rei) Slavko Cuvaj foi alvo de atentados em duas ocasiões em 1912, sem sucesso. E há a suspeita de outro ataque contra o ban Ivo Skerlecz, em maio de 1914. Os acontecimentos em Sarajevo foram uma sequência dessas ações.

Vários relatos de membros da Jovem Bósnia dão conta de que seis integrantes concordaram com o assassinado de Francisco Ferdinando durante sua visita a Sarajevo: Gavrilo Princip, Cvetko Popovic, Muhamed Mehmedbašic, Nedeljko Cabrinovic, Vasa Cubrilovic e Tvrtko Grabež. Algumas fontes indicam que Danilo Ilic era o organizador e coordenador do grupo. Muitos outros nomes já foram mencionados como direta ou indiretamente envolvidos no movimento e na execução do atentado, a maior parte deles originária da Bósnia e Herzegovina, mas também havia conspiradores da Sérvia. O papel oficial da Sérvia no planejamento do atentado de Sarajevo e a busca por um responsável pelo estopim da Primeira Guerra Mundial permanecem vitais para os historiadores da Bósnia e Herzegovina. Aceitar o envolvimento da Sérvia no atentado significa dizer que ela também tem sua parcela de culpa pelo início da Guerra. 

A captura de Gavrilo Princip, logo após o atentado em que feriu mortalmente Francisco Ferdinando. (Reprodução / Arquivo O Globo)

As possibilidades de se reconstituir o planejamento do atentado são, infelizmente, muito limitadas. Ainda assim, o historiador Joachim Remak tentou fazê-lo. De acordo com a sua reconstrução dos eventos, após a anexação da Bósnia e Herzegovina pelo Império Austro-húngaro, em 1908, formou-se na Sérvia uma organização chamada “A Defesa Nacional”, com o objetivo de disseminar uma propaganda antiaustríaca. Com o passar do tempo, ela se enfraqueceu e seu papel foi assumido por um movimento mais radical – “Unificação ou Morte”, também conhecido pelo nome de “Mão Negra”. Esta organização era conduzida por oficiais responsáveis pelo golpe de Estado na Sérvia em 1903, quando o rei Pedro I da Sérvia chegou ao trono. A figura principal era o chefe do Serviço de Inteligência Sérvio, o tenente-coronel Dragutin Dimitrijevic Apis. Ele mantinha comunicação ativa com os membros que se encontravam no território da Bósnia e Herzegovina e, no final de 1913, esteve com Danilo Ilic para planejar o que ele acreditava ser o assassinato do governador provincial na Bósnia e Herzegovina. O acordo se confirmou em uma reunião na França com os “revolucionários” da Bósnia e Herzegovina, organizada pelo major Vojislav Tankosic, no início de 1914. 

O plano inicial muito provavelmente se transformou quando os jornais noticiaram a visita do herdeiro ao trono austro-húngaro, Francisco Ferdinando, à Bósnia e Herzegovina. Tudo o que Tankosic precisou fazer foi convocar alguns dos membros da Jovem Bósnia. Muitos historiadores insistem em que a ideia do atentado surgiu em Sarajevo, em círculos próximos ao jornal Srpska rijec, e que isto apenas foi reportado aos membros do “Mão Negra” de Belgrado. Outros consideram que o plano proveio de Apis – codinome do coronel Dragutin Dimitrijevic, radical e belicista – para quem Francisco Ferdinando era um símbolo do domínio estrangeiro, da detestável monarquia.  Historiadores sérvios consideram que uma das justificativas mais aceitáveis para o assassinato de Francisco Ferdinando teria sido a sua ardente defesa da agressiva política externa austro-húngara. Deste modo, a responsabilidade da Sérvia diante dos eventos que originaram a Grande Guerra seria reduzida significativamente. Porém, diversos autores – como Robert Kann, A. J. P. Taylor e Anika Mombauer – argumentam que Francisco Ferdinando pode até ter sido um radical, mas não era um belicista. O Império Austro-húngaro provavelmente estava ciente de que a Rússia também tinha interesses nos Bálcãs, e protegeria a Sérvia. 

A visita do arquiduque (em destaque), que ocorreu no aniversário da Batalha de Kosovo (1389), entre sérvios e otomanos, foi vista por aluns como uma provocação. (Foto: Reprodução / Original da Biblioteca do Congresso Americano - Washington)

A elite política sérvia estava familiarizada com o planejamento do atentado em Sarajevo. As armas utilizadas pelos assassinos foram transportadas da Sérvia. Tudo estava preparado para o ato que deveria acontecer no grande feriado ortodoxo, o dia de São Vito. Era uma data muito significativa para os sérvios: o 28 de junho marcava os 525 anos da Batalha de Kosovo – conflito envolvendo os exércitos sérvio e otomano. Houve avisos de que a visita de Francisco Ferdinando, justamente nessa data, poderia ser considerada uma provocação. Ainda assim ela não foi cancelada. Os assassinos estavam familiarizados com o trajeto da viagem e com a visita ao prédio da prefeitura em Sarajevo. Mas a bomba lançada por Nedeljko Cabrinovic não foi suficiente para alcançar o planejado. Apesar dos feridos, o cortejo prosseguiu inalterado com o herdeiro e sua esposa Sophia. Depois disso houve diversas falhas de segurança, especialmente quando o arquiduque deixou o prédio da prefeitura com a intenção de visitar os feridos no hospital. Os motoristas não possuíam uma rota precisa, e Gavrilo Princip se aproveitou de uma manobra equivocada no trajeto: quando o cortejo parou para remanejar o caminho diante do erro e retornar, ele deu os dois tiros que mataram Francisco Ferdinando e sua esposa. 

Seriam Gavrilo Princip e Nedeljko Cabrinovic os tiranicidas de Sarajevo? Por muito tempo esta pergunta encontrou uma resposta afirmativa. Para os estudantes iugoslavos, aquele fora um ato heroico, progressista e libertador. As ações de Princip por muito tempo foram consideradas como reflexo da máxima socialista de “irmandade e unidade”, um símbolo do histórico “não” ao controle estrangeiro. 

Na década de 1990, a guerra na Bósnia e Herzegovina (1992-1995) trouxe sem piedade novas possibilidades de leitura do passado e forçou uma revisão do que havia sido ensinado. Abriu-se espaço para uma nova interpretação da ação simbólica de Princip: não seria ele um terrorista? Qual monumento deveria estar no local onde ocorreu o atentado de Sarajevo: aquele erigido a Francisco Ferdinando e sua esposa em 1917 (e retirado depois da guerra), ou aquele erigido em homenagem a Gavrilo Princip durante o período socialista (e retirado nos anos 1990)? Cem anos depois, o confronto entre Princip e Ferdinando continua em aberto.