quarta-feira, 17 de outubro de 2018

A Centralização do Poder nas Mãos dos Reis: a formação da Inglaterra e da França

O REINO INGLÊS

No início do período medieval, a Grã-Bretanha foi ocupada por anglos e saxões. Como o rei anglo-saxão Eduardo, o Confessor (1042-1066), morreu sem deixar filhos herdeiros, houve uma disputa pelo trono. Em 1066, normandos vindos do norte da atual França invadiram a ilha e, sob a liderança de Guilherme, o Conquistador (primo de Eduardo), derrotaram os anglo-saxões na Batalha de Hastings, dando início à Dinastia Normanda. Desenvolveu-se um sistema administrativo para cobrança de impostos e um forte exército foi criado. Guilherme (1066-1087) dividiu o reino em condados, os “shires”, controlados pela nobreza e fiscalizados por funcionários chamados “sheriffs”.


No mapa se vê a rota feita por Guilherme, o Conquistador, que saiu da Normandia (norte da França) para invadir e conquistar a Inglaterra em 1066. Imagem da internet.

Em 1154, a Dinastia Plantageneta substituiu a Dinastia Normanda quando Henrique II (1154-1189) subiu ao trono. Os monarcas da Dinastia Plantageneta estabeleceram a justiça real e o “Common Law”, um conjunto de leis que deveria ser aplicado em todo o território.

Ricardo I, ou Ricardo Coração de Leão (1189-1199), foi o sucessor de Henrique II. Ricardo I se envolveu em guerras contra a França e participou da Terceira Cruzada, contribuindo com sua ausência para enfraquecer o poder real na Inglaterra. No reinado de João Sem-Terra (1199-1216), irmão de Ricardo, a insatisfação dos nobres com o rei atingiu o seu ponto máximo.

Guerreando contra a França, indispondo-se com o papa, elevando os impostos e tentando taxar os bens da Igreja, João Sem-Terra acabou tendo que enfrentar a revolta da nobreza, que lhe impôs a Magna Carta (1215). Segundo o documento, o monarca só poderia criar impostos ou alterar leis após a aprovação do Grande Conselho, órgão controlado por membros do clero e da nobreza.


Ilustração que retrata o momento em que o rei João Sem-Terra assinou a Magna Carta.
Imagem da internet.

Portanto, o processo de centralização política na Inglaterra foi retardado por meio dessa limitação ao poder real. Controlado por membros da velha ordem feudal, o Grande Conselho tinha um caráter conservador, e só aceitou a participação de burgueses em 1265.

Em decorrência da disputa de territórios no norte da Europa, como a próspera região têxtil de Flandres, a Inglaterra se envolveu na Guerra dos Cem Anos (1337-1453) contra a França. Os ingleses obtiveram vitórias iniciais importantes, mas passaram a enfrentar alguns problemas, tais como a peste negra, as rebeliões camponesas (destacando-se o levante liderado por Wat Tyler e John Ball, em 1381) e o próprio prolongamento da guerra. Neste contexto, houve o enfraquecimento da nobreza.
  
Com o fim da Guerra dos Cem Anos, já no século XV, começou uma disputa pela sucessão do trono inglês que afetaria ainda mais a nobreza: a Guerra das Duas Rosas (1455-1485), confronto entre as famílias York e Lancaster, fragilizou a nobreza e possibilitou a centralização política do país com a ascensão de Henrique Tudor ao poder.


O REINO FRANCÊS

Dinastia Capetíngia (987-1328), fundada por Hugo Capeto, atuou na centralização do poder no reino francês. Um dos reis dessa dinastia foi Filipe Augusto, ou Filipe II (1180-1223), que iniciou o processo centralizador ao cobrar impostos em todo o território francês e montar um poderoso exército para garantir o seu poder. Filipe II usou como pretexto para realizar tais ações a necessidade de combater os ingleses que ocupavam o norte da França. A antiga monarquia feudal, centrada nos feudos e marcada pela atuação de suseranos e vassalos locais, dava lugar a um Estado centralizado.

Após vencer os ingleses, Filipe II consolidou o seu poder por meio da força militar, da cobrança de impostos realizada por fiscais por ele nomeados e da imposição da justiça real sobre as leis dos nobres locais. O monarca aliou-se à burguesia vendendo Cartas de Franquia aos burgos que quisessem autonomia em relação aos senhores feudais. Já para os nobres territoriais, a força monárquica serviu para garantir os privilégios da nobreza e manter a ordem e a subordinação servil.

Luís IX, cujo reinado durou de 1226 a 1270, deu continuidade ao processo de centralização por meio de uma rede de tribunais e da instituição de uma moeda de circulação nacional. Tendo participado da Sétima e da Oitava Cruzadas, falecendo nesta última, sendo posteriormente canonizado pela Igreja católica como São Luís.

Ao herdar um Estado já fortalecido, Filipe IV, o Belo, cujo reinado durou de 1285 a 1314, procurou legitimar o seu poder criando a assembleia dos Estados Gerais, em 1302, sob o primado da soberania real. Formada por membros do clero, da nobreza e por comerciantes das cidades, a assembleia tinha um caráter apenas consultivo e só era convocada quando o monarca queria. Representantes das camadas mais pobres da sociedade francesa não participavam da assembleia.

Com o apoio da assembleia, Filipe IV taxou os bens da Igreja e o papa até o ameaçou de excomunhão. Com a morte do líder da Igreja católica em 1303, Filipe IV interferiu na escolha de seu sucessor, impondo o nome de um francês que viria a ser o papa Clemente V. Além disso, o rei francês forçou a transferência da sede da Igreja de Roma para a cidade de Avignon, no sul da França, em um episódio que ficou conhecido como o Cativeiro de Avignon. Durante setenta anos os papas ficaram submetidos à autoridade do rei da França. Quando outro papa foi nomeado em Roma durante o mesmo período, ocorreu o Cisma do Ocidente que dividiu a autoridade da Igreja católica, em uma situação que só seria superada no século XV.

O fortalecimento do poder monárquico francês foi suspenso com a Guerra dos Cem Anos (1337-1453). Necessitando da nobreza para fortalecer o exército, a monarquia francesa teve de fazer concessões aos nobres. Ademais, a fome, a peste negra e a insatisfação da burguesia com as primeiras derrotas no confronto também colaboraram para o enfraquecimento da monarquia francesa. Eclodiram então as “jacqueries”, rebeliões camponesas como a ocorrida em 1358, quando castelos foram invadidos e senhores foram mortos. Essas rebeliões foram reprimidas pelo Estado e pela nobreza.

Iluminura do século XIV que retrata uma revolta camponesa ocorrida na França e que ficou conhecida como "o Massacre em Meaux". Imagem da internet.

Vitórias militares decisivas na Guerra dos Cem Anos vieram apenas no século XV, quando um grande levante popular se voltou contra os ingleses. Joana d’Arc, filha de camponeses humildes que se dizia enviada por Deus para guiar os franceses na expulsão do exército inglês, participou ativamente das lutas e teve um papel importante na resistência francesa à Inglaterra. Ela levou Carlos VII a ser coroado em Reims, conforme as antigas tradições dos francos, mas em 1430 foi capturada, acusada de heresia e condenada à morte por um tribunal eclesiástico.

Os franceses conseguiram expulsar definitivamente os ingleses apenas em 1453, quando terminou a Guerra dos Cem Anos.


Iluminura do século XV que retrata Joana d'Arc. Imagem da internet.




segunda-feira, 24 de setembro de 2018

A Centralização do Poder nas Mãos dos Reis: a formação de Portugal e Espanha

As estruturas feudais eram um obstáculo ao desenvolvimento comercial e urbano na Europa. Os vários feudos e os seus poderes locais atrapalhavam o comércio, pois os senhores feudais interferiam na atividade comercial cobrando impostos dos mercadores. Ademais, por conta da fragmentação política, não havia na Europa uniformidade territorial de leis, unidade monetária legal ou mesmo de pesos e medidas, algo que atrapalhava as transações comerciais.

A partir disso, comerciantes, artesãos e banqueiros passaram a defender a existência de um poder centralizado que se colocasse acima dos poderes locais, impusesse normas e também facilitasse o comércio. Essa burguesia europeia acabou contribuindo para a formação de um exército mercenário a serviço do Estado, uma força militar que tinha como finalidade garantir a autoridade do monarca. A ideia de centralização política também agradou aos reis europeus, que desejavam se sobrepor à nobreza e limitar o poder da Igreja.

A formação das monarquias centralizadas europeias, portanto, foi fruto da comunhão de interesses entre reis e burgueses. Por sua vez, a nobreza também acabou se beneficiando deste processo, pois o exército do rei garantia a ordem contra as rebeliões rurais e mantinha boa parte dos privilégios feudais. Quanto aos camponeses, muitos passaram a ver a figura do rei como alguém que poderia protegê-los dos abusos de poder por parte dos senhores feudais. Dessa maneira, a formação de monarquias centralizadas agradava a diferentes grupos sociais.


PORTUGAL

A Península Ibérica foi povoada por iberos, celtas, lígures, visigodos e árabes, estes últimos que lá chegaram no século VIII. A formação dos Estados centralizados na região está vinculada à Guerra de Reconquista dos territórios ocupados por muçulmanos. Foi graças à presença árabe que a religião islâmica chegou até a Península Ibérica, onde o cristianismo já se fazia presente. Os reinos cristãos independentes de Leão, Castela, Navarra e Aragão foram mantidos no norte da península, na região montanhosa das Astúrias, e foi dali que partiu o movimento da Reconquista a partir do século XI.




A presença histórica de cristãos e muçulmanos na Península Ibérica pode ser percebida por meio da arquitetura. As duas imagens acima mostram a Igreja de Alhos Vedros (Portugal), na qual a torre sineira cristã está unida a uma cúpula árabe.
Imagens da internet.  

A origem de Portugal remonta ao episódio da doação do Condado Portucalense feita pelo rei Afonso VI, de Leão e Castela, a Henrique de Borgonha, este último sendo um nobre francês participante da Guerra de Reconquista. A doação daquelas terras estava atrelada ao casamento entre Henrique de Borgonha e dona Teresa, filha ilegítima do rei. Em 1139, após disputas familiares, Portugal tornou-se independente de Leão e Castela, quando dom Afonso Henriques, o filho de Teresa e Henrique, expulsou a própria mãe do lugar porque ela defendia a sujeição do Condado Portucalense ao Reino de Leão.


A origem de Portugal está relacionada à doação do Condado Portucalense feita pelo rei Afonso VI, de Leão e Castela, a um nobre francês chamado Henrique de Borgonha. Imagem da internet.

A partir daquele momento iniciou-se a Dinastia de Borgonha (1139-1383), que continuou a guerra contra os muçulmanos e expandiu as fronteiras do reino para o sul. Com a expansão territorial, áreas eram doadas à nobreza guerreira, mas esses nobres não ganhavam a posse hereditária das terras. Em Portugal, portanto, a hegemonia da autoridade real foi mantida, enquanto que a formação de uma nobreza proprietária e autônoma não foi consolidada.

Com a transformação de Portugal em escala da rota marítima que ligava o mar Mediterrâneo ao norte da Europa, houve a consolidação do setor mercantil da sociedade portuguesa. A partir do século XIV, as guerras e a peste negra abalaram o continente europeu, aumentando a insegurança de rotas comerciais terrestres, o que fez com que a rota marítima que passava por Portugal ganhasse mais importância.

Em 1383, morreu Fernando I, o último rei da Dinastia de Borgonha, que não deixou herdeiros diretos. Houve então uma intensa disputa sucessória, pois parte da nobreza apoiava a entrega da Coroa portuguesa ao genro de dom Fernando, o rei de Castela, enquanto os comerciantes e setores populares queriam que dom João, mestre de Avis, subisse ao trono. Foi a chamada Revolução de Avis, e em 1385, na Batalha de Aljubarrota, as tropas castelhanas foram derrotadas. Dom João ascendeu ao trono e iniciou a Dinastia de Avis.

Com a nova dinastia, os interesses da monarquia e os do setor mercantil se aproximaram, pois os comerciantes queriam ampliar seus mercados e o rei queria fortalecer-se no poder por meio da cobrança de impostos. Tal aliança desencadearia a expansão marítima portuguesa a partir do século XV.


ESPANHA

Durante os tempos da Guerra de Reconquista, não havia um país chamado “Espanha”, pois o que se tinha eram os reinos de Leão, Navarra, Castela e Aragão. Com o passar do tempo, estes reinos foram se unindo uns aos outros por meio de alianças e casamentos. Em 1469, houve o casamento entre Fernando, príncipe de Aragão, e Isabel, filha do rei de Castela. Após a morte do rei de Castela, Isabel e Fernando decidiram unificar as duas coroas, o que representou um importante passo na formação da Espanha tal como a conhecemos hoje.

Fernando e Isabel ficaram conhecidos como os “Reis Católicos”, especialmente após terem firmado uma aliança com a Igreja Católica para expulsar muçulmanos e judeus da Península Ibérica. Em 1478, o papa Sixto IV criou o Tribunal do Santo Ofício (também conhecido como Inquisição) na Espanha, tribunal este que estava subordinado a Fernando e Isabel. A Inquisição espanhola encarregou-se de perseguir e punir pessoas que fossem acusadas de praticarem outras religiões diferentes da católica.


Representação de uma sala de interrogatório da Inquisição em uma obra do artista Alessandro Magnasco. Este quadro foi produzido entre 1710 e 1720. Imagem da internet.

Em 1492, a formação do Estado centralizado espanhol foi concluída após os "Reis Católicos" expulsarem os judeus do seu país e conquistarem o reino de Granada, o último reduto árabe no sul da Península Ibérica, com a consequente expulsão dos "mouros".


A Guerra de Reconquista foi o pano de fundo para a formação de Portugal e Espanha. 
A ampliação dos territórios desses dois países ocorreu simultaneamente à diminuição dos territórios ocupados por muçulmanos na Península Ibérica. Imagem da internet.

Mapa que mostra as atuais dimensões de Portugal e Espanha na Península Ibérica.
Imagem da internet.



domingo, 16 de setembro de 2018

Idade Média: tempo de transformações

A Idade Média muitas vezes é descrita como uma época de estagnação econômica e de poucas mudanças. Todavia, neste período histórico houve uma série de transformações de ordem econômica, política e também social. Especialmente a partir do ano 1000, o que se viu foram muitas mudanças na realidade do continente europeu, tais como a diminuição das invasões, a redução no número de epidemias, maior estabilidade e crescimento populacional.

Além disso, durante o período medieval houve uma notável quantidade de inovações tecnológicas. A charrua - arado de ferro - substituiu o arado de madeira, permitindo que se fizesse sulcos mais profundos no solo e que se revolvesse melhor a terra. Outra mudança importante, foi que o cavalo passou a ser usado com mais frequência para puxar os novos arados, e não mais o boi. O moinho de água passou a ser cada vez mais usado para moer cereais, enquanto que os moinhos de vento - introduzido pelos árabes entre os séculos XII e XIII - revelaram-se muito úteis para drenar a água de muitas regiões. Outra novidade foi a rotação trienal de culturas no cultivo da terra. Por meio dessa técnica, a área cultivável era dividida em três partes, mas em apenas duas se semeava alguma coisa. Na terceira parte do solo não se plantava nada, de modo a permitir que um pedaço da terra ficasse em descanso para recuperar a sua fertilidade. Nos anos seguintes, por meio de uma espécie de rodízio, mudava-se a função de cada parte do solo, conforme o esquema abaixo:

Esquema que mostra como funcionava a rotação trienal de culturas.
Imagem da internet.

Todas essas inovações na agricultura permitiram que houvesse um aumento na qualidade e na quantidade da produção agrícola. Isso favoreceu o aumento demográfico e, entre os anos de 1000 e 1300, a população europeia foi de 42 milhões para 73 milhões de pessoas. Com mais alimentos sendo produzidos, o excedente agrícola passou a ser vendido, o que reaqueceu o comércio. Com isso, o dinheiro voltou a circular com mais frequência e alguns camponeses chegavam a comprar a sua liberdade. Alguns acabaram indo para as cidades, enquanto que outros optaram por permanecer no campo recebendo salários em alguns casos.


Um vendedor de frutas e um vendedor de cereais vendem suas mercadorias em um
mercado medieval. Iluminura atribuída a Cristoforo de Predis (c. 1440-1486).

A circulação de mercadorias foi estimulada também pelas Cruzadas, por meio das quais os produtos do Oriente (como as especiarias, por exemplo) eram trazidos para a Europa. A intensificação do comércio favoreceu o surgimento de feiras regulares que normalmente eram realizadas nos cruzamentos das rotas comerciais. Com o passar do tempo, nos locais em que se realizavam as feiras começaram a aparecer e a se desenvolver muitas cidades. Aglomerações humanas também se formavam perto dos muros das abadias e dos castelos, sendo chamadas de burgos, locais onde o comércio era muito intenso.


Imagem aérea e atual do castelo em torno do qual surgiu a cidade de Carcassone (França). Na Idade Média era comum que aglomerações humanas se formassem nas proximidades dos muros dos castelos. 

Quando uma cidade surgia dentro ou perto de um feudo, os seus habitantes deviam uma série de taxas ao senhor feudal. Para conquistar a sua independência administrativa, os habitantes das cidades - em especial os comerciantes, que muitas vezes eram chamados de burgueses - buscavam obter as cartas de franquia. Essa carta era um documento por meio do qual os moradores da cidade ganhavam o direito de administrá-la por conta própria. Para as cidades, passaram a ir não apenas senhores feudais endividados, mas também servos e vilões que buscavam melhores condições de vida. Quando um camponês chegava à cidade, era comum que ele começasse a trabalhar com atividades artesanais.

Nas cidades, as mercadorias eram produzidas nas oficinas, que geralmente tinham um mestre que ficava com a maior parte dos lucros. Abaixo do mestre, estavam os oficiais, os jornaleiros e os aprendizes. No intuito de eliminar a concorrência, os mestres se organizavam em corporações de ofício que controlavam a quantidade, a qualidade e o preço das mercadorias a serem produzidas.

Nas cidades medievais também surgiram as primeiras universidades europeias, além de escolas independentes financiadas por reis e burgueses com o intuito de tirar o monopólio da Igreja sobre a educação. Para além desse estímulo à vida intelectual, as cidades da Idade Média também ofereciam diversas opções de lazer, tais como festivais com comida, música e dança. Nas tavernas, era possível beber vinho e cerveja, participar de jogos e cantar e ouvir músicas. Nas praças, era possível assistir às apresentações de artistas mambembes e a peças teatrais apresentadas nas línguas locais (e não em latim). Por sua vez, a nobreza se deleitava com os versos feitos pelos trovadores e pelos poetas.


Reprodução do quadro A Luta entre o Carnaval e a Quaresma, obra pintada por Pieter Bruegel, o Velho (1559). O quadro representa aspectos culturais que marcaram a Europa desde os tempos da Idade Média: de um lado se vê o clima festivo da cultura popular, do outro se vê a seriedade que marcava o espírito religioso da época.

Toda esse efervescência que marcou a Idade Média a partir do ano 1000, porém, sofreu um duro revés a partir do século XIV, quando a Europa passou a enfrentar uma grave crise. Secas prejudicaram a agricultura em várias regiões, o que provocou o problema da fome. Entre 1340 e 1350, uma epidemia de peste negra matou cerca de 25 milhões de pessoas no continente. A fuga de muitos camponeses da zona rural para as cidades fez com que os senhores feudais aumentassem os impostos para compensar seus prejuízos. As crescentes dificuldades fizeram com que muita gente começasse a defender mudanças na ordem social e política, porém, nas cidades a alta burguesia reagiu a quaisquer tentativas de mudança impedindo a participação política dos artesãos. O resultado foi que em várias regiões da Europa eclodiram revoltas urbanas e camponesas. Um outro episódio emblemático ocorreu quando o Império Bizantino, parceiro comercial da Europa ocidental, começou a ter partes de seu território conquistadas pelos turcos otomanos. Além disso, no século XIV também começou a Guerra dos Cem Anos entre a Inglaterra e a França. Todo esse cenário de crise levou ao enfraquecimento das relações feudais e acabou favorecendo a centralização do poder nas mãos dos reis.


A epidemia de peste negra provocou a morte de milhões de pessoas no continente europeu durante o século XIV. A doença, somada à fome e às guerras e revoltas que marcaram a crise do feudalismo, contribuiu para gerar nas pessoas a consciência de que ninguém poderia escapar da morte. Na imagem, reprodução do quadro Triunfo da Morte (1562), de Pieter Bruegel.




sábado, 15 de setembro de 2018

Aspectos gerais do Feudalismo

Feudalismo foi uma forma de organização política, social e econômica que predominou em diversas partes da Europa durante a chamada Idade Média. No Feudalismo, a economia baseava-se na agricultura e a sociedade estava rigidamente hierarquizada, onde os grandes proprietários de terras e os membros do alto clero da Igreja Católica ocupavam o topo da pirâmide social. Por sua vez, os camponeses (servos da gleba) viviam sob o domínio dos senhores feudais. As relações sociais eram marcadas por fortes laços de dependência pessoal, como por exemplo as relações de suserania e vassalagem.


AS RELAÇÕES DE SUSERANIA E VASSALAGEM

No contexto do Feudalismo, o poder político estava dividido entre os senhores feudais e o rei. O monarca, no entanto, não tinha um poder fortemente centralizado em suas mãos, uma vez que eram os próprios senhores feudais que cobravam impostos e aplicavam a justiça em seus respectivos feudos.

A palavra "feudo", aliás, não designava somente uma faixa de terras que alguém recebia para administrar, mas também era usada para se referir a um cargo ou ao direito de cobrar impostos em uma determinada região. Em geral, um grande proprietário de terras poderia conceder feudos a outras pessoas. Aquele que concedia o feudo era chamado de suserano, enquanto que quem recebia era chamado de vassalo. As relações de suserania e vassalagem eram marcadas pela fidelidade e pela obediência. Após o vassalo receber um feudo, estabelecia-se um compromisso com o suserano que se caracterizava pela troca de favores: o vassalo deveria pagar impostos e ajudar o suserano no que fosse preciso, já o suserano tinha a responsabilidade de zelar pela segurança na região ocupada pelo vassalo.

Iluminura do século XIII retratando uma cerimônia na qual
o vassalo jurava fidelidade ao suserano. Autor desconhecido.

Em diversas regiões da Europa, era comum o fenômeno da subenfeudação, onde feudos maiores poderiam ser divididos em feudos menores. Assim, um mesmo suserano poderia ter vários vassalos, enquanto que um vassalo poderia se tornar suserano de outras pessoas. Essas possibilidades faziam com que as relações entre os membros da nobreza pudessem se tornar bastante complexas, e muitas vezes o "rei" era apenas um senhor feudal no meio de muitos outros. A própria nobreza estava dividida em alta e baixa nobreza, dependendo do título de nobreza e da quantidade de terras que um nobre possuía. O acúmulo de poder por parte dos senhores feudais podia vir por meio da realização de guerras ou de casamentos arranjados.


A VIDA DOS CAMPONESES

Durante a época do Feudalismo, os camponeses eram a maioria da população europeia. O trabalho era dividido segundo o gênero, pois as mulheres camponesas dedicavam-se mais a trabalhos domésticos enquanto que os homens geralmente trabalhavam nas atividades agrícolas. Os camponeses podiam ser servos ou vilões. Os servos estavam mais presos à terra, devendo permanecer nela e cultivá-la, já os vilões eram camponeses livres.

Os camponeses tinham uma série de obrigações para com os senhores feudais, tais como:

- corveia: prestação de serviços nas terras do senhor;
- banalidade: taxa paga pelo camponês para usar as instalações de propriedade do senhor (moinhos, fornos);
- talha: entrega de parte do que o camponês produziu para o senhor.

Ilustração presente no livro As Riquíssimas Horas do Duque de Berry (século XV).
A imagem retrata o trabalho dos camponeses no campo.

Além disso, o servo devia pagar taxas para os casos de sua esposa ficar grávida ou cometer adultério. Quando o servo se casava, o senhor feudal podia passar a noite de núpcias com a noiva, o que poderia não acontecer se o servo pagasse uma espécie de "indenização" ao senhor.

Ilustração mostrando como estava dividido um feudo. Imagem da internet.


O PODER DA IGREJA CATÓLICA

Durante a Idade Média, a Igreja Católica era uma instituição muito poderosa, não só do ponto de vista espiritual (em função da importância do pensamento religioso na época), mas também do ponto de vista material, uma vez que ela era dona de terras e bens materiais diversos. Em tal cenário, era comum que membros do alto clero se tornassem senhores feudais. A Igreja se organizava de maneira hierárquica, com o papa ocupando o posto mais elevado dentro da instituição. Abaixo do papa, vinham os arcebispos, os bispos, os diáconos e os padres.

O alto clero tinha um status semelhante ao da alta nobreza. Todavia, o acesso a terra e a outros bens materiais muitas vezes contribuíam para afastar os membros do clero da vida espiritual. Casos de corrupção tornaram-se comuns dentro da Igreja, padres eram casados ou tinham amantes, cargos eclesiásticos eram vendidos, pontífices eram trocados ou assassinados com base nos mais variados interesses particulares, etc. Episódios como esses abalavam a imagem da Igreja e levaram alguns de seus membros a fazerem uma autocrítica acerca dos hábitos dos integrantes do clero. Na França, os monges do mosteiro beneditino de Cluny, por exemplo, realizaram uma reforma monástica. 

Em 1059, o Concílio de Latrão determinou o celibato dos padres, bem como uma maior autonomia por parte da Igreja. A partir disso, ficou definido que os reis só poderiam indicar bispos após autorização prévia por parte do papa. Além disso, estabeleceu-se que o papa seria eleito por um colégio de doze cardeais e não mais por imperadores ou reis. Alguns anos depois, em 1075, o papa Gregório VII publicou uma bula segundo a qual a Igreja tinha o direito de derrubar imperadores, o que na prática significa que a Igreja deveria ser obedecida por todos. Aqueles que eventualmente desobedecessem a Igreja poderiam sofrer a excomunhão. Emblemático na época foi o caso de Henrique IV, imperador do Sacro Império Romano-Germânico que, após tentar depor o papa, foi excomungado e acabou tendo que pedir perdão a Gregório VII.

Outro exemplo do tamanho da influência do pensamento religioso e da Igreja Católica na sociedade medieval está nas Cruzadas, expedições militares organizadas com o objetivo de retomar a cidade de Jerusalém do domínio muçulmano. Ao longo do tempo, várias Cruzadas foram realizadas e elas ocorriam tendo em vista objetivos não só religiosos, mas também políticos e econômicos. Com as Cruzadas, a Igreja objetivava aumentar ainda mais sua influência. Os nobres viam naquelas expedições uma oportunidade de conquistar terras e riquezas. Por sua vez, os comerciantes queriam reabrir o comércio no Mediterrâneo, que estava sob domínio muçulmano, e os camponeses buscavam conquistar sua liberdade. As Cruzadas não permitiram que os europeus recuperassem Jerusalém de maneira definitiva, mas contribuíram para estimular o comércio e trazer riquezas para cidades como Veneza e Gênova, além de fortalecer a figura do cavaleiro medieval.

Mapa mostrando os caminhos das Cruzadas. Imagem da internet.

As Cruzadas eram realizadas com base no discurso segundo o qual era necessário que os católicos "combatessem os infiéis". E por parte da Igreja, tal "combate" não ocorreu apenas por meio das Cruzadas. Em 1233, o papa Gregório IX criou o Tribunal do Santo Ofício, também conhecido como Inquisição, que tinha como função perseguir e punir pessoas acusadas de praticar as chamadas heresias. A partir de 1252, o papa Inocêncio IV autorizou o uso de tortura como método para se obter confissões nos processos contra as heresias.



sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Dia da Independência: Por que o Brasil continuou um só enquanto a América Espanhola se dividiu em vários países? (*)

(*) Texto escrito por Luis Barrucho e originalmente publicado no site da BBC News Brasil, no dia 07 de setembro de 2018. Para ver o texto conforme publicado no site de origem, clique aqui. Com ilustrações de Cecilia Tombesi e Kako Abraham.

BBC News Brasil conversou com historiadores para entender
causas que levaram à unificação do Brasil e à fragmentação
de seus vizinhos. (Ilustração: Kako Abraham)

Há exatos 196 anos, em 7 de setembro de 1822, o Brasil ganhava sua independência de Portugal.

Mas por que a América portuguesa se tornou um único país, enquanto a América espanhola se fragmentou em outros tantos?

Não há apenas uma única razão, mas várias, segundo historiadores com quem a BBC News Brasil conversou. E, para quem busca respostas fáceis, um alerta. Não há unanimidade nas conclusões.

Ilustração: Cecilia Tombesi.

Maiores distâncias, diferentes estilos de administração

Uma das causas tem a ver com a distância geográfica entre as cidades das antigas colônias e a forma como as duas possessões eram administradas por suas respectivas metrópoles.

Ainda que a colônia portuguesa tivesse dimensões continentais, a maior parte da população se concentrava em cidades costeiras, enquanto o interior permanecia praticamente inexplorado, lembra à BBC News Brasil o historiador mexicano Alfredo Ávila Rueda, da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM).

Tratado de Tordesilhas, de 1494, foi assinado por Portugal e Castela (Espanha).
Biblioteca Nacional de Portugal.

"É verdade que, hoje, o Brasil é um país enorme, com mais de 8 milhões de km². Mas, na prática, na época da independência, as principais cidades se concentravam no litoral. As distâncias entre as cidades eram, assim, menores do que na América Espanhola. O interior era praticamente território que não era controlado pela Coroa portuguesa", diz.

Já a América Espanhola era formada por quatro grandes vice-reinados: Nova Espanha, Peru, Rio da Prata e Nova Granada, com poucos vínculos - senão comerciais - entre si. Cada um deles respondia à Coroa e tinha vida própria.

Ou seja, eram administrados localmente. Além disso, foram criadas capitanias que tinham governos independentes desses vice-reinados, como as da Venezuela, Guatemala, Chile e Quito, acrescenta Ávila Rueda.

"A administração espanhola se deu em torno de duas 'sub-metrópoles': México e Peru. Isso não aconteceu no Brasil, onde a administração era muito mais centralizada", explica o historiador mexicano.

Ilustração: Cecilia Tombesi.

Diferenças entre as elites

Outra causa está relacionada à formação e à representatividade das elites nas duas colônias, na opinião do historiador brasileiro José Murilo de Carvalho.

No Brasil, a elite era muito mais homogênea ideologicamente do que a espanhola, diz ele.

Carvalho argumenta que isso se deveu à tradição burocrática portuguesa. Portugal nunca permitiu a criação de universidades em sua colônia. Escolas superiores só foram criadas após a chegada da corte, em 1808. Assim, os brasileiros que quisessem e pudessem ter formação universitária tinham que viajar a Portugal, sobretudo à cidade de Coimbra.

"Diante de um pedido para se criar uma escola de Medicina em Minas Gerais, no século 18, a resposta da Corte foi: agora pedem uma faculdade de Medicina, daqui a pouco vão pedir uma faculdade de Direito e, em seguida, vão querer a independência", exemplifica o historiador brasileiro.

Quando se formavam, esses ex-alunos voltavam ao Brasil e acabavam ocupando cargos importantes na administração da colônia. Ou seja, um desembargador em Pernambuco formado em Coimbra tinha grandes chances de conhecer um desembargador do Rio de Janeiro também diplomado na mesma universidade, ou de ter conhecidos em comum, o que, na opinião de Carvalho, favoreceu um sentimento de unidade na colônia.

"Esses estudantes luso-brasileiros em Coimbra tinham organização própria. Envolveram-se no mesmo ensino que os portugueses e foram absorvidos pela burocracia da Corte, sendo enviados a todos os pontos do império português - do Brasil à África. Portugal tinha uma população muito pequena à época e não havia gente suficiente para administrar seu império. Acabou dependendo dos brasileiros treinados lá", diz.

"Eles formaram grande parte da elite política brasileira até cerca de 1850, como ministros, conselheiros de Estado, deputados e senadores", acrescenta.

Segundo Murilo de Carvalho, essa formação da elite brasileira em Portugal acabou por favorecer a obediência à figura real e a crença nas virtudes do poder centralizado.

Entre 1772 e 1872, passaram pela Universidade de Coimbra 1.242 estudantes brasileiros.

Por outro lado, na América Espanhola, durante esse mesmo período, 150 mil estudantes se formaram em universidades locais, diz Carvalho. Havia pelo menos 23 universidades na colônia, três delas apenas no México. Só a Universidade do México formou quase 40 mil estudantes.

Dessa forma, argumenta o historiador, quando os movimentos de independência na América Espanhola começaram a ganhar força, no século 19, eles surgiram coincidentemente nos locais onde havia universidades. E praticamente todos esses locais com universidades acabaram dando origem a um país diferente.

Ávila Rueda contesta, contudo, essa última hipótese. "Essas universidades eram, em sua maioria, reacionárias...aliadas à Coroa espanhola", diz.

"A Universidade do México, por exemplo, era muito reacionária, a tal ponto que, em 1830 (após a independência do México), o governo mexicano decidiu fechá-la porque acreditava que não seria possível reformá-la", acrescenta.

Neste sentido, o historiador mexicano diz acreditar que a livre circulação de impressos (jornais, livros e panfletos) na América espanhola, que não era permitida na América portuguesa (a proibição só foi revertida em 1808, com a chegada da corte portuguesa ao Brasil), teve papel muito mais importante na construção de identidades regionais do que propriamente as universidades.

"Já na América portuguesa, tudo o que era consumido vinha de Portugal, o que gerava esse vínculo muito forte com a metrópole", lembra.

Mas fato inconteste era que, na América espanhola, os nascidos na colônia, os chamados criollos, a elite local (grandes proprietários de terras, arrendatários de minas, comerciantes e pecuaristas) eram desprezados em relação aos nascidos na Espanha, os Peninsulares.

Até 1760, quando a Espanha era governada pela dinastia dos Habsburgo, as colônias tinham bastante autonomia.

Mas tudo mudou com as reformas borbônicas feitas pelo rei espanhol Carlos 3º. Naquele momento, a Espanha precisava aumentar a extração de riqueza de suas colônias para financiar a manutenção de seu império e guerras nas quais estava envolvido.

Com isso, a Coroa decidiu expandir os privilégios dos peninsulares - colonos nascidos na Espanha -, que passaram a ocupar os cargos administrativos anteriormente destinados aos criollos.

Ao mesmo tempo, as reformas realizadas pela Igreja Católica reduziram os papéis e os privilégios do baixo clero, que também era formado em sua maioria por criollos.

Declaração de Guerra de Dom João VI a Napoleão Bonaparte.
Biblioteca Nacional de Portugal.

Família Real Portuguesa fugiu de Portugal rumo ao Brasil
por causa de Napoleão Bonaparte. Câmara Municipal de Lisboa.

Napoleão invade Portugal...e a família real portuguesa foge para o Brasil

Outro motivo que explica a manutenção da unidade do Brasil, senão o mais importante, foi a fuga da família real portuguesa para sua então maior colônia, de acordo com os historiadores.

Em 1808, com a invasão de Portugal por Napoleão Bonaparte, o príncipe regente João fugiu para o Rio de Janeiro, transferindo não somente a corte, mas toda a burocracia do governo: arquivos, biblioteca real, tesouro público e cerca de 15 mil pessoas. O Rio de Janeiro virou, então, a sede político-administrativa do império. A presença do rei em território brasileiro serviu como fonte de legitimidade para que a colônia se mantivesse unida.

"O rei era um herdeiro legítimo do poder. Temos dificuldade de entender a importância disso hoje, mas naquela época a figura de Dom João 6º como monarca tinha muita força", diz à BBC News Brasil o historiador americano Richard Graham, professor emérito da Universidade do Texas e considerado um dos maiores especialistas em história da América Latina nos Estados Unidos.

Carvalho explica que a "transferência trouxe para o Brasil toda a burocracia portuguesa. Portugal passou a ser uma dependência. Desenvolveu-se, portanto, um foco de legitimidade política no país".

"Se Dom João não tivesse vindo para o Brasil, o país teria se dividido em cinco ou seis países. Os lugares de maior desenvolvimento econômico, como Pernambuco e Rio de Janeiro, teriam conseguido sua independência", assinala.

Napoleão Bonaparte forçou o rei espanhol Fernando VII a abdicar do
trono em favor de seu irmão, José (mais tarde José I, da Espanha, retratado no quadro).
Museu Nacional do Castelo de Fontainebleau.

Enquanto isso, o rei espanhol é forçado a abdicar do trono...

Na Espanha, contudo, essa fonte de legitimidade foi questionada após a invasão de Napoleão. Ele forçou o rei espanhol, Carlos 4º e seu filho, Fernando 7º, a abdicar do trono a favor de seu irmão, José Bonaparte (mais tarde José 1º da Espanha).

Na colônia, a notícia caiu como uma bomba. Aqueles que viviam na América Espanhola já não sabiam mais a quem obedecer. Surgiram juntas administrativas, muitas das quais no começo governavam em nome de Fernando 7º, recusando-se a receber ordens de juntas semelhantes formadas na Espanha (após a invasão de Napoleão, o governo espanhol foi dividido em inúmeras juntas administrativas).

Quando Napoleão foi derrotado, esses líderes locais já tinham experiência de autogoverno. Reconduzido ao trono em 1814, Fernando 7º não garantiu a autonomia deles e tentou usar a força para restabelecer a submissão das colônias.

Esse fato aliado à política discriminatória por parte da Coroa Espanhola em relação aos nascidos nas Américas fez com que eles se rebelassem, inspirados pelos ideais iluministas espalhados pelas revoluções americana e francesa.

Dom João VI chegou ao Brasil em 1808. MNBA.

Com o apoio de outras castas, eles travaram lutas sangrentas contra a Espanha por independência, entre 1809 a 1826.

Por outro lado, quando Napoleão foi derrotado, Dom João 6º elevou o Brasil à condição de Reino Unido a Portugal. Também permaneceu no Rio de Janeiro até que as cortes exigissem seu retorno a Lisboa, em 1820, e aceitasse uma constituição liberal.

Dom João 6º deixou seu filho, Pedro, como príncipe regente no Brasil, e em 1822, Pedro tornou o Brasil independente, coroando a si mesmo como Dom Pedro 1º. O Brasil ganhou então a independência como uma monarquia constitucional.

Segundo a narrativa oficial, Dom Pedro I teria proclamado a Independência do Brasil às margens do Rio Ipiranga. Museu do Ipiranga.

Temor social

Preocupações econômicas e sociais também contribuíram fortemente para assegurar a unidade do Brasil.

Segundo Graham, fazendeiros e homens ricos das cidades acabaram aceitando uma autoridade central por dois motivos: a ameaça de desordem social e o apelo de uma monarquia legítima.

Um possível desmembramento do Brasil em diferentes países poderia colocar em xeque o firme controle social desejado pelos proprietários de terras e escravocratas. Inicialmente, eles achavam que conseguiriam manter o respeito e a obediência, mas revoltas populares provaram o contrário, na prática. No Haiti, por exemplo, a independência significou o fim da escravidão.

Embora o Brasil tenha conseguido sua independência de Portugal sem recorrer à luta militar generalizada, os líderes regionais procuravam maior liberdade em relação à capital, o Rio de Janeiro, diz Graham.

Mas, com o tempo, eles perceberam que essa vontade de reivindicar um autogoverno regional ou a independência completa do governo centralizado poderia enfraquecer sua autoridade, não somente sobre os escravos, mas também sobre as classes inferiores em geral. Ou seja, temiam a desordem social.

"É importante lembrar que o Brasil era um país de escravos. Eles compunham grande parte da população. Era muito perigoso que as classes dominantes começassem a brigar entre si e colocassem em risco sua legitimidade", destaca Graham.

"Essa classe dominante temia que esses escravos pudessem aproveitar-se de suas divisões internas para se rebelar", acrescenta.

Na América Espanhola, por outro lado, diz o historiador americano, "as elites (...) aprenderam que poderiam lidar muito bem com uma população irrequieta. Todos os países hispano-americanos tomaram medidas que objetivavam terminar com a escravidão, possivelmente para diminuir o perigo da revolta escrava. Mestiços (e alguns mulatos, como na Venezuela), tinham o comando de forças militares e eram frequentemente recompensados com posse de terras tomadas dos monarquistas", diz.

Estatísticas sobre o comércio de escravos embasam tal hipótese.

Ilustração: Cecilia Tombesi.

Entre 1500 e 1866, a América Espanhola recebeu 1,3 milhão de escravos trazidos da África. No mesmo período, desembarcaram no Brasil 4,9 milhões, segundo dados da The Trans-Atlantic Slave Trade Database, um esforço internacional de catalogação de dados sobre o tráfico de escravos - que inclui, entre outros, a Universidade de Harvard.

O levantamento foi possível porque os escravos eram uma mercadoria, registrada na entrada e saída dos portos, sobre a qual incidia cobrança de impostos. Nenhum outro lugar do mundo recebeu tantos escravos.

Levantamento de 2 de maio ocorrido em 1808 em Madri e duramente reprimido. Foi o estopim para a Guerra de Independência Espanhola. Museu do Prado.

Fragmentação em vários países

Mas por que as fronteiras dos países recém-independentes na América Espanhola não se mantiveram as mesmas das dos quatro vice-reinados? Ou seja, por que houve tanta fragmentação?

Explica Ávila Rueda: "Na época colonial, o conceito de fronteira era distinto do dos Estados modernos. O que havia era um sistema de jurisdição, não de fronteiras. E as diferentes jurisdições às vezes se sobrepunham umas às outras".

Ele cita o caso do vice-reinado de Nova Espanha (território que compreende parte dos Estados Unidos, México e América Central).

"Em termos de governo, o vice-rei tinha controle sobre praticamente todo o território, salvo as regiões mais ao norte, que eram independentes neste sentido. Mas, a nível fiscal, o governo do México tinha controle sobre essas regiões. Já em relação a questões jurídicas, a gestão era totalmente diferente".

"Assim, houve conflitos bélicos muito fortes para delimitar essas fronteiras no século 19, inclusive após a independência", acrescenta.

Ávila Rueda lembra que, com a abdicação de Fernando 7º, ocorre um processo em que os territórios provinciais passam a lutar por "mais autonomia".

"Julgamos o passado a partir do nosso ponto de vista atual. Achamos que o vice-reinado de Nova Espanha se manteve como um país unido, que é o México atual. Mas nos esquecemos que depois da independência, surgiu o império mexicano, que incluía a atual América Central. Posteriormente, com a dissolução do império mexicano, se estabeleceram a federação mexicana e a federação centro-americana, que mais tarde se desintegraria em outros países", diz.

Argentino José de San Martín é também conhecido como o libertador de
Argentina, Chile e Peru. Museu Histórico Nacional da Argentina.

"Houve um processo de fragmentação na América Espanhola. Eventualmente, algumas dessas províncias formam confederações para ter força militar e se defender de outros inimigos. Ou são unidas à força, como fez Simón Bolívar", acrescenta.

Graham concorda. "Se você vai se tornar independente da Espanha, por que continuaria a se submeter aos mandos e desmandos de Buenos Aires, por exemplo? A divisão por vice-reinos era burocrática. E as fronteiras atuais dos países da América Latina demoraram para ser consolidadas. Não era possível prevê-las antes de 1810, pois resultaram de disputas internas após a independência", explica.

Mas é importante lembrar que também houve na América Espanhola planos de unificação, que não avançaram.

Militar e estadista, Bernardo O'Higgins foi uma das principais figuras militares
fundamentais do movimento de independência do Chile. 
Instituto Geográfico Militar de Chile.

Em 1822, Simón Bolívar e José de San Martín, duas das figuras mais importantes da descolonização da América Espanhola, reuniram-se na cidade de Guayaquil, no Equador, para discutir o futuro da América Espanhola.

Enquanto Bolívar era partidário da unidade das ex-colônias (ele forçou a unificação da Colômbia e da Venezuela) e a formação de uma federação de repúblicas, San Martín defendia a restauração da monarquia, sob a forma de governos liderados por príncipes europeus. A ideia de Bolívar voltou a ser discutida no Congresso do Panamá, em 1826, mas acabou rejeitada.

E se Fernando 7º tivesse feito o mesmo que D. João 6º e transferido a corte às Américas, o mapa da América Latina seria diferente do que é hoje?

Em um artigo, o historiador americano William Spence Robertson, já falecido, cita a frase de um observador espanhol em 1821: "O México não aceitaria as leis que fossem sancionadas em Lima; nem Lima aceitaria as leis que fossem sancionadas no México".

Agustín de Iturbide foi declarado imperador do México como Agustín I após a independência em relação à Espanha. CASAIMPERIAL.ORG

"A principal pergunta, portanto, é onde ele escolheria se estabelecer. Não acredito que o México permaneceria leal a um rei estabelecido em Lima e não em Madri", diz Graham.

Documento "Declaração ao Mundo" ou "Notas para a História" foi encontrado
junto ao corpo de Agustín de Iturbide após sua execução; o sangue sobre o papel é do próprio Agustín. World Digital Library. 

"Mas certamente (se Fernando 7º tivesse se transferido às Américas) haveria menos divisões do que, na verdade, ocorreu", acrescenta.

Isso porque os reis oferecem legitimidade.

Tanto é que, na Argentina, quando um congresso em 1816 declarou a independência das "Províncias Unidas", Juan Martin de Pueryrredón, nomeado diretor dessa entidade, tentou, nos três anos seguintes, em vão buscar alguém na Europa com vínculo real para se tornar rei das Províncias Unidades do Rio da Prata.

"A própria mulher de Dom João, Dona Carlota Joaquina, tinha vontade de se tornar rainha do Prata", lembra Murilo de Carvalho.

Já no México, quando as cortes espanholas se recusaram a reconhecer a independência mexicana e a permitir que um membro da realeza aceitasse o trono do império mexicano, Agustín Iturbide, um dos mentores da independência, forjou uma eleição ao fim da qual foi coroado imperador, como Agustín 1º.

No Peru, também foi aventada a possibilidade de um príncipe espanhol liderar uma monarquia independente.

Militar liberal e líder político venezuelano, Simón Bolívar foi um dos primeiros a lutar pela descolonização da América Espanhola. Coleção do Banco Central da Venezuela.

Rebeliões no Brasil

Mas o processo de unificação territorial no Brasil tampouco foi totalmente pacífico. Houve movimentos de caráter emancipacionista em Minas Gerais (1789), na Bahia (1798), em Pernambuco (1817).

No entanto, essas revoltas foram mais fomentadas por um sentimento de autonomia do que propriamente por um desejo de ruptura entre a colônia e a metrópole.

Tiradentes participou da Inconfidência Mineira, mas a revolta não tinha desejo de libertação de todo o território brasileiro. Museu Mariano Procópio.

Um exemplo emblemático disso foi a chamada Inconfidência Mineira, liderada por Tiradentes em Minas Gerais (1789). Não havia nessa conspiração antimetropolitana nenhum desejo de libertação de todo o território.

Quando Dom Pedro 1º declarou a Independência do Brasil, em 1822, por exemplo, a maior parte das províncias do norte foram contra e permaneceram leais a Portugal, até defrontarem-se com uma força vinda do Rio de Janeiro.

Ainda assim, como lembra Graham, "mesmos os grupos do sul que declaram sua aliança a D. Pedro 1º, em meados de 1822, não significavam o triunfo do nacionalismo. Ao contrário, eles simplesmente preferiam o domínio dele, com a promessa de autonomia local, ao domínio das cortes portuguesas, que ameaçava essa autonomia".

Ávila Rueda acrescenta ainda que, "como na América portuguesa não houve uma guerra de independência e sim uma continuidade com a transferência da corte, o governo do Rio de Janeiro tinha mais força para suprimir essas rebeliões".

"Em contrapartida, o governo do México não tinha força suficiente para evitar o desmembramento da América Central. Tampouco o governo de Buenos Aires em relação a Uruguai ou Paraguai", acrescenta.

'Acordo de interesses'

Segundo a historiadora brasileira Lilia Schwarcz, "a independência do Brasil foi uma solução de compromisso entre as elites, no sentido de primeiro evitar uma mudança estrutural na então colônia que se tornaria um país e evitar grandes conturbações sociais", diz.

"Houve um ajuste entre as várias elites locais no sentido de preservar a escravidão, evitar o formato de uma revolução, inclusive sabendo do que havia ocorrido na América Espanhola e conseguir manter o país unificado", acrescenta.

Graham concorda. "O governo central não foi imposto às pessoas influentes ou até mesmo "vendido" a eles. Eles (a elite brasileira) o escolheram", assinala.

"Eles procuravam legitimidade porque, sem ela, sua autoridade local permanecia relativamente fraca. Eles desejavam fortalecer a hierarquia porque ela validaria a sua própria posição local predominante. Para alcançar esses objetivos, eles construíram um estado central, simbolizado no imperador. A monarquia tinha sua utilidade".

Sentença contra líderes da Inconfidência Mineira. Arquivo Nacional do Brasil.

"A presença do imperador foi fundamental. As elites pretendiam que o imperador fosse uma espécie de símbolo a unificar as diferentes províncias e que, de alguma maneira, ele fizesse uma passagem não tão convulsionada como no restante da América Espanhola. Sabemos que a história não foi bem assim, mas foi o que aconteceu no momento da independência", diz Schwarcz.

Por fim, a opção por um governo central, além de afastar o espectro de uma anarquia social, também favorecia estender o poder dessas elites, uma vez que cabia a elas as indicações aos cargos públicos, como oficiais da Guarda Nacional, delegados de polícia e juízes.

"Eles vieram a considerar o governo central como apropriado e útil para fins pessoais", diz Graham.

Já no fim do século, com a unidade do Brasil já assegurada e a escravidão abolida, as elites já não precisavam mais "de um símbolo vivo do estado" para estabelecer sua legitimidade.

O império acabou destronado pelo Exército, que proclamou a república quase sem disparar um único tiro.